quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A Paixão de Cristo

O pátio noturno que se revela na primeira cena é tenebroso, quase pertencente a um filme de terror. E a narrativa parcimoniosa, serena, porém firme do diretor Mel Gibson, já desde esse princípio consegue se mostrar amedrontadora, sobretudo, talvez aos expectadores que sabem de antemão o quê lhes aguarda.
Jesus Cristo Nazareno tem medo. Interpretado com bastante propriedade e compromisso por Jim Cazievel (de “Além da Linha Vermelha”), o messias é mostrado, como não poderia deixar de ser, em suas facetas humanas mais suscetíveis aos flagelos terrenos –ao longo do filme ele experimentará, além do medo, o abandono, o repudio, a desesperança, o desespero, a desorientação e a dor em suas inúmeras e insuportáveis expressões, além de diversas outras sensações tão mundanas quanto atrozes, antes de, por fim, deixar esta vida.
“Paixão de Cristo” se impõe assim como um exercício de estilo e, por que não, de brilhantismo do diretor Mel Gibson, onde ele logrou empregar toda sua obsessão artística por uma reconstituição fiel aos fatos históricos que tanto se mostraram interessantes em sua pequena mais brilhante filmografia, que vai desde os detalhes mais sutis até os mais evidentes, o quê determinou diretamente a excelência artística do resultado final, bem como a reação de assombro perplexidade com a qual o público o respondeu.
Falado todo em hebraico, o filme acompanha assim as 12 últimas horas de vida de Jesus Cristo na terra. A traição de Judas (Luca Lionello) e sua conseqüente prisão pelos soldados romanos. O julgamento movido por Caifás (Mattia Sbragia) e os outros sacerdotes. A sentença decretada por Poncio Pilatos (Hristo Shopov). O interminável martírio até a crucificação. Tudo acompanhado de perto por seus seguidores e pelo testemunho perplexo e impotente de sua aflita mãe, Maria (Maia Morgenstern, fabulosa), e da ex-prostituta devota e recuperada, Maria Madalena (Monica Bellucci). Encerrando, enfim, com a morte na cruz mostrada com assustador realismo.
Muitos foram os que criticaram a maneira gráfica com que Gibson expôs o calvário –tão reconstituído em tantos outros filmes, todos infinitamente mais amenos do que este –assim como a ligeira sugestão de anti-semitismo da narrativa (personagens como Judas, Poncio Pilatos ou mesmo Barrabás ganham interpretações ambíguas e humanizadas, enquanto Caifás e os sacerdotes do templo são retratados com desprezível vilania), e muitos foram também aqueles que o louvaram como uma grande obra –o quê ele de fato é.
Gibson promove uma recriação árdua, minimalista e até mesmo apaixonada das percepções, texturas e elementos da época rigidamente como teria sido (o que converge no assombro das cenas ultra sangrentas e ultra violentas que deram muito o que falar), de forma ainda mais dedicada e artisticamente perseverante do que ele fez no ganhador do Oscar, “Coração Valente” –neste sentido, “Paixão de Cristo” se irmana, de fato, com outro grande filme realizado por Gibson logo depois, “Apocalypto”.
O mestre Martin Scorsese pode até ter feito um trabalho ainda mais amplo e admirável em seu esplêndido “A Última Tentação de Cristo”, mas Mel Gibson certamente urgiu um filme que é um testemunho à tenacidade, ao talento e à força estética de si próprio como um artista que, após uma consagrada carreira como ator, revelou-se um diretor de estilo forte e contundente.

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