Satoshi Kon se despe aqui, até certo ponto, da
escuridão corrosiva que definia muito da carga dramática de seu memorável
“Perfect Blue”. Não há também aquela angústia filosófica e cerebral na falta de
distinção de realidades sonhadas e despertas de “Paprika”.
O fantástico e o sobrenatural interferem sim, muito
sutil e ocasionalmente, nos acontecimentos deste novo trabalho, mas há uma
serenidade lúdica que remete a um tipo de obra mais amena, por vezes,
semelhante a um conto de fadas.
No que tange aos aspectos narrativos, este
mestre da animação vale-se das mesmas técnicas primorosas –ainda que um bocado
mais de leveza e delicadeza –utilizadas por ele em seus já clássicos
exemplares; que incluem também “Millenium Actress”, além de “Perfect Blue” (o
magnífico “Paprika” foi uma realização posterior).
Expectadores mais atentos perceberão um ligeiro
toque de Charles Dickens usado para contar a edificante história de três
indigentes que encontram um bebê às vésperas do Natal, e tomam para si a missão
de devolvê-lo aos pais.
Myiuki é uma jovem rebelde que experimenta em
níveis exponenciais os sentimentos conflitantes (até habituais na adolescência)
de culpa e injustiça –ela se vê sem lugar para morar (e, mais do que isso, sem
capacidade para perdoar a si mesma) por ter esfaqueado p o próprio pai, um
policial, há cerca de seis meses; Gin é um mendigo de meia-idade cuja aflição
da vida (assim como a dolorosa lembrança de tudo o que perdeu por conta de
desleixo e negligência) é sistematicamente contornada pela contínua submersão
no próprio vício, o álcool; já, Hana, uma drag-queen, optou pela condição algo
penitente da sarjeta desde que seu marido, o único ser humano que a aceitava de
fato, faleceu.
Em comum, estes três personagens
têm o fato de dividirem uma mesma barraca de lona como indigentes em Tokyo, e
de partilharem, cada qual, de contundentes conflitos familiares (o quê se
estenderá para outros personagens conforme esses conflitos forem melhor
enunciados, inclusive). Há outra coisa em comum: O bebê achado no lixo e que,
nessa noite de Natal, os unirá em torno do objetivo genuíno e salutar de
levá-lo de volta para casa. O altruísmo –no melhor estilo Frank Capra –é,
assim, algo que germina e purifica: A partir desse gesto, o três desafortunados
protagonistas irão repensar suas vidas e os caminhos tomados por eles que os
conduziram àquela vida de subsistência, dando margem para que suas próprias
histórias encontrem o desfecho do perdão e da reconciliação.
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