A arte de criar mundos imaginados e neles
imergir o público –quando realizada com exatidão e preciosismo –é tarefa de
poucos gênios isolados. Daí o fato de um filme desigual como “A.I. Inteligência
Artificial” despertar intriga e até algum alvoroço na época de seu lançamento:
Tratava-se ele da conjunção inédita de duas das mais superlativas mentes
criativas que o cinema já havia testemunhado, Stanley Kubrick e Steven
Spielberg.
Ainda que isso ocorresse de uma maneira
agridoce –o estilo de Kubrick de filmar, como ficou conhecido, leva tempo e
consumia, às vezes, anos de dedicação de seu elenco e sua equipe técnica, como
podem atestar os dois anos gastos para realizar “De Olhos Bem Fechados”, sua
última obra. Devido a isso, muitos foram os filmes que Kubrick se obrigou a
deixar de fazer, como o projeto “The Arian Papers”, abortado por coincidir com
o lançamento de “A Lista de Schindler”, do próprio Spielberg que possuía tema
semelhante.
Mas, um projeto persistia em seu coração: A
história de “A.I. Inteligência Artificial”, extraída do livro “Superbrinquedos
Duram O Verão Todo”, de Brian Aldiss, que Kubrick acarinhava desde a década de
1980, de certa forma, inspirado pelo cult “Blade Ranner-O Caçador de Andróides”.
A realização, contudo, encontrava obstáculos em várias características de
Kubrick como realizador: O personagem principal era um menino (ou melhor, um
menino-robô) e o método extenso e demorado de Kubrick filmar poderia levar a
criança protagonista a envelhecer diante das câmeras (daí, uma decisão
subseqüente de talvez empregar um personagem digital, embora na época os
efeitos especiais não tivessem evoluído o suficiente para materializar tal
intento); o conceito de fabula em si, inerente à história pedia por um
realizador mais lúdico e menos corrosivo –o quê levou Kubrick a oferecer o
projeto à seu amigo Spielberg, que lisonjeado ainda assim recusou. Mas, Kubrick
almejava levar “A.I.” às telas, e decidiu que seria seu projeto imediatamente
posterior à “De Olhos Bem Fechados”.
Então, Kubrick morreu.
Ciente do imenso valor que “A.I.” tinha para o
amigo, Spielberg resolveu então assumir a direção do filme e terminá-lo
preservando, na medida do possível, as características que Kubrick havia
imaginado para ele –e deve ter sido um desafio decifrar as caóticas anotações
de pré-produção que Kubrick elaborou para “A.I.” ao longo dos anos –ainda que
também fazendo dele algo seu, o quê o filme também é, visto que ele abarca
muito das obsessões que o próprio Spielberg trabalhou ao longo da carreira.
No futuro, uma mãe desolada (Frances O’ Connor)
cujo filho se encontra em coma num hospital recebe um robozinho protótipo capaz
de manifestar emoções se ela assim o desejar. O robozinho, David (o magistral
Haley Joel Osment, o garotinho de “O Sexto Sentido”), se parece com criança e
apresenta emoções de criança, inclusive ao amá-la como se fosse sua mãe. Mas o
filho verdadeiro desperta do coma, o que a obriga a escolher por um dos dois.
Assim, ela deixa David no meio de uma floresta de onde ele partirá para uma
jornada por esse mundo do futuro, acompanhado de Gigolo Joe (Jude Law, ótimo),
um robô adulto não tão avançado. David anseia acima de tudo, encontrar a Fada
Azul, de quem ele ouvira falar ao escutar a história de "Pinóquio", para
que possa pedir a ela para transformá-lo num menino de carne e osso, e ele
possa assim voltar para sua mãe.
Do jeito como está, “A.I.” possui uma razoável
harmonia entre os conceitos de Kubrick –mantidos por Spielberg numa narrativa
respeitosa que, sobretudo, em sua primeira parte, busca emular os enquadramentos
formais, o distanciamento emocional e o estilo de Kubrick –e as alterações
inevitáveis para que Spielberg concluísse a obra, que em suas mãos soa muito
mais como um conto de fadas do que se tivesse sido feito por Kubrick –que,
certamente, teria dado um tom mais lúgubre e transgressivo ao filme.
O único pecado de Spielberg de fato é a falta
de objetividade (que sobrava em Kubrick) em relação ao protagonista com o qual
se apegou: Ele estende o filme um ato a mais –onde introduz alienígenas como
uma forma de auto-referência –para proporcionar um prólogo onde o menino-robô
David encontra algo próximo de uma redenção.
Ainda que neste momento –e somente nele –o filme
de Spielberg adquira ares redundantes.
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