quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Máscara da Ilusão


Desigual por uma série de fatores, esta notável obra de fantasia saída da mente de Neil Gailman, prestigiado autor de quadrinhos, aparenta beber da mesma fonte do clássico dos anos 1980 "Labirinto-A Magia do Tempo" –sendo essa fonte “Alice No País das Maravilhas”, de Lewis Caroll –e com ela compõe um trabalho cinematográfico que se destaca pela ambigüidade de abordagem (é sombrio e inocente; lírico e violento) e pelo fascinante apuro visual.
Com efeito, seu diretor e designer de produção é Dave McKean, também ele oriundo dos quadrinhos (fez inúmeras parcerias com Gailman), onde ilustrou, entre outras, a graphic-novel “Batman-Asilo Arkhan”.
É o modo como o estilo incomum, surreal e singular de McKean manipula cada fotograma do filme que torna único este trabalho inglês cujas percepções podem amedrontar as crianças (os expectadores mais suscetíveis à sua proposta fantasiosa) e intrigar os adultos (que ficarão, com alguma razão, confusos sobre qual gênero o filme tenta adotar).
A menina Helena (Stephanie Leonidas) é filha de artistas circenses. Com frequência, ela entra em atritos com a mãe (Gina McKee, de “Um Lugar Chamado Notting Hill”) motivada por uma insatisfação latente com sua rotina –e sem dúvida, impulsionada pelo turbilhão hormonal da fase adolescente que ainda virá.
Quando a mãe adoece gravemente, levando os artistas do circo à deixar sua família para prosseguir com a vida nômade, Helene refugia-se num mundo de fantasia quando a realidade parece lhe oprimir.
Esse outro mundo no entanto, que em princípio ela toma como um mero sonho, aos poucos, começa a fornecer a ela pistas de que influencia poderosamente o mundo real: Lá há uma princesa benevolente, à qual foi imposto um sono aparentemente sem fim (que corresponde ao estado cada vez mais comatoso de sua mãe no hospital), e há também uma rainha, poderosa e manipuladora (por sua vez, a versão opressora e antagônica de sua mãe) que perdeu a própria filha e deseja escravizar Helena para que fique eternamente enfeitiçada em seu lugar.
Por conta dos desdobramentos muito reais que ocorrem em seus sonhos e pesadelos, os entes queridos de Helena podem assim estar correndo perigo. A sáida pode estar na descoberta de uma certa ‘Mirror Mask’ –o título original do filme –mencionada nos diários da verdadeira princesa desaparecida.
Se a trama remete à filmes dos anos 1980 e toda sorte de fantasias moldadas nas últimas décadas –fonte primordial de inspiração para a verve mitológica de Neil Gailman –o visual do filme não permite que ele se encaixe em qualquer definição de lugar-comum.
Desde os momentos iniciais –quando a premissa ainda se mantém no que seria a realidade comum –há uma diferenciação flagrante nos enquadramentos de câmeras, nas justaposições de imagens, na construção cênica e nas escolhas criteriosas de cores (um exercício de estilo de McKean que lembra uma mescla rebuscada entre Terry Gillian, Jean Pierre-Jeneaut e Tim Burton) que abraçam um radicalismo que chega a exceder até mesmo casos referenciais como “Labirinto do Fauno”, de Guillermo Del Toro, lançado naquele mesmo ano. Quando a trama avança para o mundo de fantasia então, todo o poderio sensorial de Dave Mckean infesta as imagens, com predominante manipulação digital sobre as tomadas –e a computação gráfica, deliberadamente cartunesca, acaba proporcionando um senso de realismo que engole os atores em cena numa espécie de angústia psicodélica, muito a ver com a personalidade de seus realizadores.
Digno de ser chamado de um exemplo único no cinema, “Máscara da Ilusão” permanece, ainda que obscuro e bastante desconhecido de boa parte do público, como um caso singular onde o estilo de Gailman e McKean –tão aclamado em meio aos quadrinhos alternativos –fpo vertido em toda sua glória e estranheza para o cinema.
E tão perfeito e preciso foi o alcance desse objetivo que o inevitável resultado foi este filme insólito, desafiador e amargamente sufocante onde a fantasia (e todo seu contemplativo detalhamento) serve ao registro alegórico de tristezas tão profundas quanto impronunciáveis.

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