sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O Império do Sol


Steven Spielberg inspirou-se nas memórias e nas peripécias experimentadas pelo escritor James G. Ballard (autor do livro que inspirou “Crash-Estranhos Prazeres”, de David Cronenberg) quando criança, durante a Segunda Guerra Mundial, para compor uma de suas primeiras e mais contundentes incursões no cinema sério no que tange à tentativa de criar uma obra relevante no panorama cinematográfico comercial, longe das fantasias a que era associado.
E Spielberg o faz com fôlego invejável: Cada cena traz um virtuosismo de fotografia (a cargo do competente Allen Daviau), ou um truque visual que incrementa a condução dramática –de certo modo, como se o ainda jovem Spielberg estivesse pisando em ovos ao adentrar o terreno inédito da dramaturgia adulta (dois anos antes ele havia feito sua primeira experiência nesse sentido, “A Cor Púrpura”).
Apesar disso, “Império do Sol” trazia muitas de suas características como realizador: Um protagonista infantil (Christian Bale, algumas décadas antes de virar Batman); um fascínio pueril e irreprimível por elementos específicos relacionados à guerra (no caso, os espetaculares aviões de combate) e não necessariamente ao combate em si; e uma figura paterna central, ainda que distante e nada afetuosa (no personagem vivido por John Malkovich).
1941. Na cidade de Shangai, com a invasão japonesa à porta e o ataque à Pearl Harbor –mesmo que ninguém ainda soubesse –na berlinda, a família aristocrática do garoto inglês Jamie (Bale) vive entre os abastados ingleses que integravam a elite do lugar.
Nesse princípio, quando os indícios da guerra e da ocupação são esboçados aos poucos, o diretor Spielberg salienta a ironia da circunstância com um rigor absurdista na cena em que os aristocratas seguem em seus carros rumo a uma festa à fantasia, trajados em disfarces coloridos e espalhafatosos, enquanto a turbulência cresce progressivamente nas ruas.
Quando por fim a invasão se concretiza, os pais de Jamie protelaram tempo demais sua partida: Eles se vêem no caos das ruas, o que leva Jamie a perder-se deles.
Perdido nas ruas de Shangai, faminto e desamparado a ponto de quase tornar-se um mendigo, ele é encontrado por um matreiro sobrevivente norte-americano, Basie (Malkovich). Em companhia do qual acaba indo parar num campo de concentração montado pelos japoneses.
Lá, ao longo de quatro anos, Jamie sobrevive valendo-se de esperteza e trocas constantes, bem como de combinações sucessivas –como o acordo para mudar-se do Dormitório Inglês (onde ficam conhecidos indiferentes como a mulher interpretada por Miranda Richardson) para o Dormitório Americano (onde está Basie), junto dos rapazes que planejam uma fuga (entre eles, Ben Stiller e Joe Pantoliano, ainda jovens) desde que consiga colocar armadilhas para faisões nas cercas sem que os soldados notem.
Tão brilhante na concepção de cenas coletivas como nas de vibração mais íntima, a direção de Spielberg, assim como o roteiro detalhista de Tom Stoppard, parece enfatizar, nesse trecho, uma espécie de materialismo compulsivo, dando atenção às negociações constantes do pequeno protagonista (as aquisições frequentes de variados itens, como o sapato de jogar golfe) enquanto deixa os eventos mais tensos, e históricos referentes à guerra quase como pano de fundo, sem, no entanto, abrir mão de uma irreprimível tristeza que permeia toda essa trajetória.
Em algum momento, após os bombardeios americanos deixarem bem claro para a moral japonesa os rumos que a guerra tomou, os prisioneiros do campo de concentração são abandonados e seguem sem rumo. Ao lado de uma moribunda Sra. Victor (a personagem de Miranda), Jamie fica em um estádio olímpico usado para estocar mobília confiscada e testemunha ao longe os efeitos longínquos da bomba atômica –ainda que inicialmente ele acredite ser uma manifestação da alma da Sra. Victor que havia acabado de morrer.
Após acompanhar seu pequeno herói numa verdadeira saga de sofrimento, encarceramento e sobrevivência, Spielberg o reúne novamente com seus pais, quando ele já nem mais se recordava do rosto deles; efeito que ele consegue produzir no expectador também devido às feições pouco marcantes dos atores escolhidos.
Neste grande trabalho de Spielberg, ainda que infectado por um certo superficialismo, fica bastante patente, a despeito das emoções nem sempre eficazes, que Jamie sobreviveu graças ao espírito incansavelmente sonhador que sempre alimentou –esse, sim, um tópico ao qual Spielberg jamais deixou de enfatizar em sua carreira.

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