segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Crimes de Paixão


Há um registro semelhante na personagem de Kathleen Turner deste filme e na de Teresa Russell em “A Prostituta”, que o mesmo Ken Russell realizou alguns anos depois.
No entanto, ao contrário de Teresa (cuja presença naquele projeto prejudicou sua carreira), Kathleen Turner consegue tirar de letra a sexualidade assumida e escancarada da personagem e ainda cativar o expectador com um carisma genuíno e uma atuação admirável, mesmo que em meio à momentos espinhosos, fruto da compulsiva vontade do diretor em ultrajar.
Três personagens se sobrepõem como os cernes do tortuoso fluxo de caminhos que a trama se presta a cruzar. São eles, o especialista em vigilância, Bob Grady (John Laughlin, de “Quadrilha de Sádicos 2”), cujos transtornos não assumidos no casamento o levam a se dedicar cada vez mais ao trabalho; a prostituta China Blue (Kathleen Turner, esfuziante) que extravasa sua libido e sua insegurança nos programas noturnos para, de dia, sentir-se confortável sendo a séria estilista de moda Joanna Crane (um brilhante comentário humano à parte vem as ser a sucessão de clientes bizarros e diversos que ela atende: Um homem excitado por uma encenação de um discurso de Miss; outro que renega o fato evidente de que requisita o programa para fingir que a estupra; um policial valentão em seus trajes, mas submisso ao masoquismo quando nu e na intimidade do quarto; um casal milionário desejoso de um terceiro parceiro oriundo das ruas, ainda que em repúdio justamente da promiscuidade que representa).
O Terceiro protagonista é o Reverendo Peter Shaive (Anthony Perkins, pleno em sua inquietação histriônica) cujas pregações insanas e instáveis noite afora começam a ter como foco cada vez mais China Blue.
Todos chafurdam numa insatisfação social da qual parecem só conseguir emergir por meio de atos ilícitos: China Blue leva uma vida dupla, e tão opostos são seus extremos quanto são também de uma convicção radical; Bob Grady convive com a infelicidade matrimonial e, ao mesmo tempo, com o deslumbre da vida de solteiro (devido à presença de seu melhor amigo, numa interpretação primorosa de Bruce Davison); e o Reverendo Shaive, apesar do inflamado discurso sobre os pecados morais imputados ao ser humano se acha sempre por perto (atraído até) pelo mundo cão de promiscuidade que almeja condenar –um anjo em teoria, um habitante do inferno na prática.
Insatisfeito com os rumos distantes de seu casamento com Amy (Annie Potts, de “Os Caça-fantasmas”), Grady aceita o trabalho de seguir Joanna Crane –seu patrão desconfia do comportamento excessivamente centrado dela e imagina que ela tem algo a esconder.
E tem. Ao descobrir as atividades noturnas de Joanna como China Blue, Grady não pestaneja em experimentar um programa com ela –numa de inúmeras cenas às quais o diretor Russell acrescenta seu estilo escandaloso e inquisitivo.
Depois de estabelecido um vínculo emocional, Joanna (ou China Blue) passa a representar para Grady um novo caminho a seguir na busca pelo amor e pela plenitude sexual que seu casamento não trouxe. A mesma China Blue significa, aos olhos lunáticos do Reverendo Shaive, uma autenticação para sua missão de purificar a sordidez que ele enxerga nos atos mundanos das ruas –em referências religiosas manifestadas sempre num viés questionador que predominam na ousada filmografia de Ken Russell –e esse curso certamente levará à tensa e perigosa situação construída no trecho final, revelando Shaive tanto como um antagonista potencialmente perigoso, como também o paradoxo de desilusão e contradição que espelha a própria Joanna Crane. E ter o próprio Anthony Perkins de “Psicose” no elenco é uma oportunidade de Russell empregar tal personagem numa sensacional e desconcertante referência, já ao fim, ao conhecido Norman Bates.
O último filme americano do audacioso e sempre incompreendido Ken Russell escancara sua necessidade de uma denúncia feroz da hipocrisia e das aflições domésticas e sociais que acabam levando pessoas normais a trocar a felicidade pela excentricidade.

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