Há um registro semelhante na personagem de
Kathleen Turner deste filme e na de Teresa Russell em “A Prostituta”, que o
mesmo Ken Russell realizou alguns anos depois.
No entanto, ao contrário de Teresa (cuja
presença naquele projeto prejudicou sua carreira), Kathleen Turner consegue
tirar de letra a sexualidade assumida e escancarada da personagem e ainda
cativar o expectador com um carisma genuíno e uma atuação admirável, mesmo que
em meio à momentos espinhosos, fruto da compulsiva vontade do diretor em
ultrajar.
Três personagens se sobrepõem como os cernes do
tortuoso fluxo de caminhos que a trama se presta a cruzar. São eles, o
especialista em vigilância, Bob Grady (John Laughlin, de “Quadrilha de Sádicos
2”), cujos transtornos não assumidos no casamento o levam a se dedicar cada vez
mais ao trabalho; a prostituta China Blue (Kathleen Turner, esfuziante) que
extravasa sua libido e sua insegurança nos programas noturnos para, de dia,
sentir-se confortável sendo a séria estilista de moda Joanna Crane (um
brilhante comentário humano à parte vem as ser a sucessão de clientes bizarros
e diversos que ela atende: Um homem excitado por uma encenação de um discurso
de Miss; outro que renega o fato evidente de que requisita o programa para
fingir que a estupra; um policial valentão em seus trajes, mas submisso ao
masoquismo quando nu e na intimidade do quarto; um casal milionário desejoso de
um terceiro parceiro oriundo das ruas, ainda que em repúdio justamente da
promiscuidade que representa).
O Terceiro protagonista é o Reverendo Peter
Shaive (Anthony Perkins, pleno em sua inquietação histriônica) cujas pregações
insanas e instáveis noite afora começam a ter como foco cada vez mais China
Blue.
Todos chafurdam numa insatisfação social da
qual parecem só conseguir emergir por meio de atos ilícitos: China Blue leva
uma vida dupla, e tão opostos são seus extremos quanto são também de uma
convicção radical; Bob Grady convive com a infelicidade matrimonial e, ao mesmo
tempo, com o deslumbre da vida de solteiro (devido à presença de seu melhor
amigo, numa interpretação primorosa de Bruce Davison); e o Reverendo Shaive,
apesar do inflamado discurso sobre os pecados morais imputados ao ser humano se
acha sempre por perto (atraído até) pelo mundo cão de promiscuidade que almeja
condenar –um anjo em teoria, um habitante do inferno na prática.
Insatisfeito com os rumos distantes de seu
casamento com Amy (Annie Potts, de “Os Caça-fantasmas”), Grady aceita o
trabalho de seguir Joanna Crane –seu patrão desconfia do comportamento
excessivamente centrado dela e imagina que ela tem algo a esconder.
E tem. Ao descobrir as atividades noturnas de
Joanna como China Blue, Grady não pestaneja em experimentar um programa com ela
–numa de inúmeras cenas às quais o diretor Russell acrescenta seu estilo
escandaloso e inquisitivo.
Depois de estabelecido um vínculo emocional, Joanna
(ou China Blue) passa a representar para Grady um novo caminho a seguir na
busca pelo amor e pela plenitude sexual que seu casamento não trouxe. A mesma
China Blue significa, aos olhos lunáticos do Reverendo Shaive, uma autenticação
para sua missão de purificar a sordidez que ele enxerga nos atos mundanos das
ruas –em referências religiosas manifestadas sempre num viés questionador que
predominam na ousada filmografia de Ken Russell –e esse curso certamente levará
à tensa e perigosa situação construída no trecho final, revelando Shaive tanto
como um antagonista potencialmente perigoso, como também o paradoxo de
desilusão e contradição que espelha a própria Joanna Crane. E ter o próprio
Anthony Perkins de “Psicose” no elenco é uma oportunidade de Russell empregar
tal personagem numa sensacional e desconcertante referência, já ao fim, ao
conhecido Norman Bates.
O último filme americano do audacioso e sempre
incompreendido Ken Russell escancara sua necessidade de uma denúncia feroz da
hipocrisia e das aflições domésticas e sociais que acabam levando pessoas
normais a trocar a felicidade pela excentricidade.
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