Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza
em 1997, a obra que é vista pelos críticos como o fim de um ciclo na carreira
de cineasta de Takeshi Kitano –no lamentável sentido de que tal ciclo
representava seu auge criativo –tenta reaproveitar a mesma concepção desigual
presente no maravilhoso “Sonatine”.
Como naquele trabalho, os esforços de Kitano no
roteiro, na produção, na direção e na atuação como protagonista depositam os
personagem, os elementos e até mesmo a premissa de um filme tipicamente
policial num contexto atípico e inesperado, rico em contemplação e lirismo,
bastante indicativo da natureza versátil e artística de seu realizador (e um
tanto sintomático de um certo egocentrismo também), além de referencial, em
certa postura narrativa, ao fundir a parcimônia do diretor Yasujiro Ozu com as
circunstâncias criminais dos filmes de Jean-Pierre Melville.
Kitano vive o policial Nishi, um homem de
poucas palavras (pouquíssimas, na verdade) cuja morte e a tragédia parecem
cercá-lo por todos os lados. Ele se recupera do falecimento da própria filha
resignando-se na seriedade do trabalho, contudo, sua esposa (Kayoko Kishimoto)
padece no hospital; e as perspectivas dos médicos não são nada animadoras.
Além de amargar as lembranças incômodas da
morte de um jovem colega policial em um tiroteio provocado –ele imagina –por
seu temperamento irredutível, Nishi também precisa lidar com uma emboscada
feita contra seu melhor amigo, Horibe (Ren Osuge, de “A Cura” e “O Samurai do Entardecer”), cilada da qual escapou com vida, porém, paraplégico.
Essa sucessão de infortúnios levam Nishi –que
tem, também ele, lá as suas dívidas com os yakuzas –a arquitetar lentamente um
plano: Disfarçar-se de guarda de trânsito e assaltar um banco de onde irá tirar
dinheiro o bastante para colocar sua vida –e a de seus entes próximos –em
ordem; ou o mais perto possível disso...
Narrado com serenidade espartana (alguns
diriam, em ritmo deliberadamente lento mesmo!) e composto por frames
intercalados cujos ângulos independentes os tornam quadros interligados por um
fio condutor de tal maneira tênue que, em sua primeira meia hora, o expectador
precisa fazer certo esforço para manter-se atento ao fio da meada da trama,
esta obra de Takeshi Kitano abstêm-se de expectativas fornecidas ao expectador
–e, por isso, a história, a despeito de seu caráter tremendamente disperso,
sugere a possibilidade de seguir em qualquer direção.
O rumo que Kitano escolhe exemplifica seu
estilo autoral: De posse do dinheiro, Nishi segue um plano nebuloso onde o
vemos sair em viagem ao lado da esposa, na descoberta de uma certa alegria que
os dramas passados afastaram. Ao mesmo tempo, ele envia presentes aos amigos
–alguns enigmáticos em suas embalagens misteriosas que nunca são mostradas abertas
lembrando as alegorias de Luis Buñuel –como Horibe e a jovem viúva de Tanaka, o
jovem policial morto.
Todavia, as pendências não tardam a encontrar
Nishi –os yakuzas vão atrás dele, mesmo tendo toda sua dívida quitada, com
pretextos cabotinos para extorquir-lhe mais dinheiro; e alguns policiais de seu
distrito também têm lá uma trilha de pistas acerca do assalto à banco que levam
até Nishi.
O protagonista de Kitano espelha o próprio
filme que estrela no sentido de que é um homem brutal e truculento –e não raro,
surge ao centro de algumas cenas súbitas e desconcertantes de violência que
aqui e ali irrompem a calmaria da narrativa –mas, é também alguém sensível à
aflição interior da própria esposa e ao desamparo do melhor amigo. Calado, ele
deixa que todos os demais coadjuvantes orbitem à sua volta e falem sem parar,
deixando-o como uma figura fixa no filme, cujas reais impressões absorvemos
através das expressões, também elas um bocado impenetráveis, do ator Kitano.
O propósito disso é meio que revelado ao fim,
quando percebemos que o personagem tem uma arma com duas balas em seu tambor.
Mas, para quem elas são? Para os dois policiais (e amigos) que, por fim, o
encontraram? Ou para ele próprio e a esposa, no que seria então a reta final de
seu plano?
Atento à beleza dessas
nuances em seu trabalho, Kitano não fornece uma resposta tornando o impacto
emocional de “Hana-Bi” muito mais perene.
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