Depois do passo inicial dado pelo diretor
Robert Zemeckis na confecção de um longa-metragem totalmente gerado a partir da
tecnologia da captura de performance (resultando no natalino “O Expresso Polar”), o seu projeto seguinte nessa mesma esteira pareceu bem mais ambicioso:
Elaborar o que seria a tradução cinematográfica definitiva para o poema épico
sobre a lenda de Beowulf e Grendel –já adaptada em inúmeros filmes obscuros e,
em geral, de qualidade B.
Soava promissor: Quais maluquices Zemeckis não
seria capaz de engendrar na história uma vez que a captura de performance (como
“Expresso Polar” deixou bem claro) prescindia de qualquer limitação humana?
Para amplificar ainda mais a expectativa do
público, os roteiristas do projeto eram o quadrinista Neil Gaiman e o premiado
Roger Avary (de nada menos que “Pulp Fiction-Tempo de Violência” e “Regras da Atração”).
Beowulf (vivido por Ray Winstone, com sua
versão digital consideravelmente rejuvenescida) é um cavaleiro que singra a
Europa do Século VIII no objetivo de criar uma fama quase mitológica para si
mesmo, difundindo suas próprias histórias (algumas providencialmente exageradas
de como venceu diversos monstros).
Nessa espécie de busca, Beowulf chega onde
parece ser o objetivo para o qual foi talhado: Na Ilha de Sjaelland, próxima à
cidade de Roskilde, na Dinamarca, ele tem conhecimento do temor experimentado
pelo rei Hrothgar (Anthony Hopkins) e seu povoado, afrontados quase todas as
noites por um monstro implacável conhecido como Grendel –no registro de
inesperada humanização promovido pela percepção desigual dos roteiristas,
Grendel, no entanto, não prima por ser ameaçador: Em seus momentos solitários,
ele é mostrado padecendo de uma dor insuportável uma vez que sua sensível
audição o torna selvagem ao menor barulho de festejos do local.
Quando o embate tão acalentado pela narrativa
entre o cavaleiro e o monstro por fim acontece –pouco antes da primeira metade
se encerrar –não é exatamente por Beowulf que o expectador torce; as opções
estilísticas com as quais a trama é contada tanto enfatizam a vaidade arrogante
e presunçosa de Beowulf como as características humanamente sofredoras de
Grendel (que a propósito é interpretado com todos os cacoetes histriônicos por
Crispin Glover).
Mortalmente dilacerado em sua luta com Beowulf,
Grendel busca refúgio nas cavernas longíquas que lhe servem de casa, onde uma
criatura de poder e maldade milenar responde a ele como sua mãe.
Depois que ele morre, a represália dela é
macabra: Na noite em que os aldeões comemoram a destruição de Grendel, vários
de seus moradores amanhecem trucidados e enforcados no salão de festas local.
Com o trono de Sjaelland como prêmio, e tendo a
relíquia conhecida como Chifre de Ouro como garantia disso, Beowulf encara
sozinho a erma jornada até a morada de Grendel disposto a dar cabo em
definitivo de sua lendária mãe. Porém, o cavaleiro tem uma inesperada surpresa:
A mãe de Grendel (chame-mos-na de Criatura) não é exatamente um monstro, ou um
demônio, ou qualquer ser tenebroso que ele estivesse esperando; a Criatura se
revela um ser sobrenatural, sim, e certamente perigoso, porém, nas formas
sedutoras da atriz Angelina Jolie –que a captura de performance recria com
perfeição facial e corporal em cena (inclusive com direito a uma reveladora
nudez!).
Ela
seduz Beowulf fazendo com ele um acordo; ele lhe dá um filho (em troca de
Grendel, aquele que dela tirou) assim como o Chifre de Ouro, e ela, por meio de
seus poderes dá a ele força e vitalidade eternas –o que deixa subentendido que
a Criatura outrora fez o mesmo acordo com o rei Hrothgar, e que Grendel seria
então seu filho.
Os anos se passam com Beowulf, após o suicídio
de Hrothgar, ocupando o posto de rei e desposando a mulher dele, a rainha
Wealtheow (Robin Wright). Todavia, se antes Beowulf tinha contentamento e sede
de vida, agora, ele ostenta um semblante amargo, resignado; se antes (quando
Hrothgar ainda era o rei), seu desejo por Wealtheow era ardente, agora, a
presença dela o constrange, em grande parte, porque Wealtheow dirige a ele o
mesmo olhar de decepção que antes dirigia à Hrothgar.
Quando um jovem cavaleiro, quase
inadvertidamente, encontra e rouba o Chifre de Ouro da caverna da Criatura, ela
e Beowulf novamente entram em rota de colisão; afinal, com a relíquia roubada
–e entregue nas mãos de Beowulf –a trégua está também rompida, e por conta
disso, Beowulf terá de enfrentar o seu próprio filho com a Criatura (um
transmorfo capaz de assumir a forma de dragão) a fim de proteger seu reino.
Essas tintas adultas que conferem um teor
sombrio e fatalista à “Lenda de Beowulf” infelizmente não se refletem em
acréscimos qualitativos ao resultado final; a sensação mais imediatamente
perceptível é a do tremendo prejuízo que isso acarreta à empatia do
protagonista e de sua conexão com o público –e está aí, o pequeno detalhe que
compromete toda a bela carpintaria narrativa e o impecável aparato técnico e
visual do filme: Todas as suas qualidades estão a serviço de um herói que não
consegue despertar simpatia no expectador.
Comentários em torno do
fato da captura de performance ser uma tecnologia que rapidamente se torna
ultrapassada são assim redundantes (nesse sentido “O Expresso Polar” envelheceu,
mas não perdeu seu encanto); seu grande pecado é justamente falhar na ausência
de calor humano.
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