Consciente da desigual singularidade que seu
biografado, o cantor e compositor Bob Dylan, experimenta na cena artística, o
diretor Todd Haynes (também ele dono de um desigual pendor artístico) cria uma
quase anti-biografia, num estilo solto e atrevido que, em seu inconformismo,
sua ousadia e sua originalidade consegue evocar exatamente o espírito de Bob
Dylan, e sua capacidade de não se deixar apreender ou rotular; existem pois
seis personagens principais diferentes (!), interpretados por seis atores
diferentes (um deles, inclusive, é uma mulher!).
E todos de alguma maneira são Bob Dylan.
E nenhum deles realmente é.
Em sua infância, ele é Woody Guthrie, vivido
pelo pequeno Marcus Carl Franklin. Woody Guthrie é, na realidade, o nome
homônimo também do cantor que Dylan venerava quando muito novo. Numa manobra
que torna a confusão de identidades proposta pela narrativa ainda mais
contundente, o pequeno Woody vai visitar o Woody Guthrie, verdadeiro e famoso,
no hospital.
Um pouco mais velho, Ben Wishaw (o Q de “007 Operação Skyfall”) interpreta Arthur Rimbaud, homônimo, por sua vez, do poeta francês
que serviu de fonte constante às citações de Dylan. Suas profecias e frases
dissertativas sobre o mundo, a vida e o ser humano pontuam inúmeras passagens protagonizadas
pelos outros ‘Dylans’.
Na metade da década de 1960, época da
consolidação como astro emergente da música, mais precisamente em 1965,
encontramos talvez a melhor dentre todas as personificações: O irrequieto Jude
Quinn, vivido com detalhado brilhantismo por Cate Blanchett –que, por esta
atuação concorreu ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 2008 –e, por incrível
que possa parecer, a composição que mais se aproxima do Bob Dylan como ele é
mundialmente conhecido: Um astro aclamado por seu dom musical singular,
frequentemente inadequado ao próprio sucesso, cujo (mau) comportamento lhe
arruma desafetos entre a imprensa e os puristas da música folk (gênero que, em
sua genialidade, ele insistia em desconstruir).
Um ano depois, 1966, encontramos outro
personagem que talvez seja uma peça nesse quebra-cabeça chamado Bob Dylan:
Trata-se de Billy (Richard Gere), um homem absolutamente comum –e plenamente
disposto a SER comum –a morar de forma humilde e reclusa em um afastado
vilarejo.
Em 1966, Dylan sofreu um acidente de moto após
o qual desapareceu durante tempo; Billy é a personificação desse ímpeto de
reclusão de Dylan, uma tentativa dos realizadores compreenderem o que ele fez
durante aquele tempo e, mais importante, o que se passava então em sua cabeça.
Já nos anos 1970, ele está de volta à música
folk, desta vez como Jack Rollins (Christian Bale), um músico de sucesso que
não tarda a enxergar, no alcance quase transcendental da música sobre as
massas, um poder que chega às raias do religioso –e, disposto a ir até o fim
nessa analogia, abraça essa similaridade convertendo-se, ele próprio, num líder
religioso; como, aliás do ocorreu com Bob Dylan realmente numa reconhecida fase
de sua vida.
Por fim, encontramos o ator Robbie Clark (o
saudoso Heath Ledger, num dos últimos projetos antes de seu falecimento)
escalado, por sua vez, a interpretar Jack Rollins em um filme. Robbie Clark, a
espelhar tormentos do próprio Dylan, é assombrado por esse personagem
exuberante, influente e carismático que esperam dele –uma atribulação que o
persegue, como a uma maldição, em sua vida pessoal. Há um vislumbre, por sinal,
de seu relacionamento com a carinhosa Claire (Charlotte Gainsbourg), mãe de seu
filho, inspirada, por sua vez, em Sara Lownds, a primeira esposa de Dylan.
Se não é (e nem deseja ser) uma biografia no
sentido convencional do termo, o trabalho de Todd Haynes faz uma investigação
íntima cheia de propriedade na forma com que assume a complexidade de seu
biografado fragmentando-o em distintas pessoas e personalidades, a explorar
assim suas fases contrastantes de vida, as cores radicais que separam o público
do privado, e o sentimento de ambiguidade inerente à arte e ao artista.
Um filme difícil
certamente, mas tão enigmático quanto sedutor em sua bela originalidade.
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