Mais polêmico do que nunca, o diretor inglês
Ken Russell almejou em “Valentino” conceber uma homenagem ao período áureo do
cinema mudo, ao mesmo tempo em que era também uma denúncia de comportamentos
nocivos flagrados já nesse período, e um exercício de seu próprio e desafiador
cinema, visualmente extravagante, narrativamente inquisitivo e artisticamente
indomável.
O filme tem início em 1926, com a avassaladora
notícia da morte precoce por apendicite do astro Rudolph Valentino (o bailarino
Rudolf Nureyev, ótimo no papel) que leva milhares de fãs estarrecidos às ruas,
transformando seu funeral em um caos. Durante a comoção –filmada por Ken
Russell com ênfase diabólica na histeria coletiva que retrata –surgem mulheres
aflitas que marcaram presença em importantes momentos da vida de Valentino; e
que, a enunciarem os flashbacks sistemáticos que contam sua história, fornecem
uma estrutura episódica ao roteiro escrito por Mardik Martin e pelo próprio
Russell.
A começar por Bianca De Saulles (June Bolton,
de “007 Contra O Foguete da Morte”), sofrida esposa de um gangster em Nova York
que apaixonou-se por Valentino, ou Rudy, como era chamado, quando era ainda tão
somente um italiano radicado nos EUA, funcionário de uma casa noturna cuja proprietária
o usava praticamente como cafetão: Sua envolvente habilidade como dançarino e
sua sensualidade enfeitiçavam as clientes mais velhas que a ele dedicavam
gorjetas generosas.
Farto disso, e já nutrindo o sonho de ir para
Los Angeles, Rudy dá um basta, mas seu romance com Bianca não encontra
futuro...
Na Costa Leste, Rudy passa a trabalhar num nada
promissor número musical ao lado de uma dançarina alcoolatra quando chama a
atenção de June Mathis (Felicity Kendal) em sua última e tumultuada apresentação:
Quando abandona esse emprego ao mesmo tempo em que se torna amante de uma atriz
de cinema (Carol Kane, de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”).
Um ano depois, Rudy já está gravando filmes,
inicialmente como mero coadjuvante ou, quando muito, no papel de vilão,
estereótipo que os mesquinhos e obtusos produtores da época insistiam em lhe
impor. Aos poucos, porém, graças à visão de June e da diretora artística Alla
Nazimova (Leslie Caron), que lhe enxergam o carisma desigual, ele passa a
ganhar cada vez mais protagonismo nas produções hollywoodianas, até sagrar-se
como astro absoluto do cinema mudo.
Todavia, a vida de Rudy não encontra qualquer
sossego: Casado com a atriz Natasha Rambova (Michelle Philips) por quem se
apaixona durante as filmagens de “O Sheik”, ele arruma diversos problemas a
começar por sua prisão –quando insistiu em casar-se com Natasha estando ainda
em processo de divórcio de sua esposa anterior, o que, no Estado da Califórnia,
implica detenção por bigamia.
A noite infernal em que Rudy foi obrigado a
passar na cadeia é mostrada por Russell em todas as suas tintas de irreal
pesadelo.
Solto apenas na manhã seguinte (por que o
estúdio desejava obter publicidade gratuita com o fato), Rudy rompe seu
contrato, o que lhe arruma inimigos na indústria –e o obriga a um afastamento
de quase dois anos das telas de cinema.
Seu regresso é antecipado graças a uma jogada
de marketing de seu amigo e novo empresário George Ullman (Seymour Cassel, de
“Death Game”) que o leva, junto de Natasha, a uma série de festejadas apresentações
em solo americano. Quando volta a fazer filmes, já usufruindo do status de
astro absoluto, Rudy enfrenta certa discriminação no meio artístico, onde vê
até mesmo sua masculinidade ser questionada –em parte, devido à forte
influência de sua esposa em sua carreira artística; com efeito, Rudy e Natasha
terminam se separando.
Mas, como o filme de Russell mostra de maneira
jocosa e desconcertante, o preconceito nunca deixa de perseguir Rudy: Por conta
disso, quando sua saúde já se achava em processo de debilitação, ele compra uma
singular briga com jornalistas que o difamaram em matérias oportunistas. O
resultado disso é uma bizarra luta de boxe –duelos seriam proibidos pelas leis
americanas! –entre ele e um jornalista outrora campeão de boxe da marinha (!),
uma sequência que, não por acaso, ganha ares de circo de horrores.
Realizado com o vigor e o despudor
característicos de Ken Russell, esta cinebiografia lança um olhar exagerado
sobre algumas passagens bastante tumultuadas da trajetória de Rudolph
Valentino, embaralhando verdades e boatos, e evidenciando os elementos que
sempre foram caros ao cinema de Russell.
À essa visão irrestrita do excesso (e, por que
não, fascinada por ele também), o diretor acrescenta também uma conjectura
dramática onde compreende que, se nenhuma tragédia é completa, nenhuma
felicidade ou realização é completa também: Os sonhos mais puros e genuínos de
Rudy (o de trazer sua mãe da Itália e de montar uma fazenda de laranjas) são
aqueles que ele jamais chega a realizar.
Esta criação peculiar da
dramaturgia nada usual de Ken Russell transforma Rudolph Valentino numa vítima
das engrenagens desumanas e massacrantes do show business em meio a uma
trajetória onde o diretor nos convida a observar com certo sadismo suas passagens
mais absurdas e espalhafatosas, e termina nos fazendo lamentar o seu amargo
fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário