segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Valentino, O Ídolo, O Homem

Mais polêmico do que nunca, o diretor inglês Ken Russell almejou em “Valentino” conceber uma homenagem ao período áureo do cinema mudo, ao mesmo tempo em que era também uma denúncia de comportamentos nocivos flagrados já nesse período, e um exercício de seu próprio e desafiador cinema, visualmente extravagante, narrativamente inquisitivo e artisticamente indomável.
O filme tem início em 1926, com a avassaladora notícia da morte precoce por apendicite do astro Rudolph Valentino (o bailarino Rudolf Nureyev, ótimo no papel) que leva milhares de fãs estarrecidos às ruas, transformando seu funeral em um caos. Durante a comoção –filmada por Ken Russell com ênfase diabólica na histeria coletiva que retrata –surgem mulheres aflitas que marcaram presença em importantes momentos da vida de Valentino; e que, a enunciarem os flashbacks sistemáticos que contam sua história, fornecem uma estrutura episódica ao roteiro escrito por Mardik Martin e pelo próprio Russell.
A começar por Bianca De Saulles (June Bolton, de “007 Contra O Foguete da Morte”), sofrida esposa de um gangster em Nova York que apaixonou-se por Valentino, ou Rudy, como era chamado, quando era ainda tão somente um italiano radicado nos EUA, funcionário de uma casa noturna cuja proprietária o usava praticamente como cafetão: Sua envolvente habilidade como dançarino e sua sensualidade enfeitiçavam as clientes mais velhas que a ele dedicavam gorjetas generosas.
Farto disso, e já nutrindo o sonho de ir para Los Angeles, Rudy dá um basta, mas seu romance com Bianca não encontra futuro...
Na Costa Leste, Rudy passa a trabalhar num nada promissor número musical ao lado de uma dançarina alcoolatra quando chama a atenção de June Mathis (Felicity Kendal) em sua última e tumultuada apresentação: Quando abandona esse emprego ao mesmo tempo em que se torna amante de uma atriz de cinema (Carol Kane, de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”).
Um ano depois, Rudy já está gravando filmes, inicialmente como mero coadjuvante ou, quando muito, no papel de vilão, estereótipo que os mesquinhos e obtusos produtores da época insistiam em lhe impor. Aos poucos, porém, graças à visão de June e da diretora artística Alla Nazimova (Leslie Caron), que lhe enxergam o carisma desigual, ele passa a ganhar cada vez mais protagonismo nas produções hollywoodianas, até sagrar-se como astro absoluto do cinema mudo.
Todavia, a vida de Rudy não encontra qualquer sossego: Casado com a atriz Natasha Rambova (Michelle Philips) por quem se apaixona durante as filmagens de “O Sheik”, ele arruma diversos problemas a começar por sua prisão –quando insistiu em casar-se com Natasha estando ainda em processo de divórcio de sua esposa anterior, o que, no Estado da Califórnia, implica detenção por bigamia.
A noite infernal em que Rudy foi obrigado a passar na cadeia é mostrada por Russell em todas as suas tintas de irreal pesadelo.
Solto apenas na manhã seguinte (por que o estúdio desejava obter publicidade gratuita com o fato), Rudy rompe seu contrato, o que lhe arruma inimigos na indústria –e o obriga a um afastamento de quase dois anos das telas de cinema.
Seu regresso é antecipado graças a uma jogada de marketing de seu amigo e novo empresário George Ullman (Seymour Cassel, de “Death Game”) que o leva, junto de Natasha, a uma série de festejadas apresentações em solo americano. Quando volta a fazer filmes, já usufruindo do status de astro absoluto, Rudy enfrenta certa discriminação no meio artístico, onde vê até mesmo sua masculinidade ser questionada –em parte, devido à forte influência de sua esposa em sua carreira artística; com efeito, Rudy e Natasha terminam se separando.
Mas, como o filme de Russell mostra de maneira jocosa e desconcertante, o preconceito nunca deixa de perseguir Rudy: Por conta disso, quando sua saúde já se achava em processo de debilitação, ele compra uma singular briga com jornalistas que o difamaram em matérias oportunistas. O resultado disso é uma bizarra luta de boxe –duelos seriam proibidos pelas leis americanas! –entre ele e um jornalista outrora campeão de boxe da marinha (!), uma sequência que, não por acaso, ganha ares de circo de horrores.
Realizado com o vigor e o despudor característicos de Ken Russell, esta cinebiografia lança um olhar exagerado sobre algumas passagens bastante tumultuadas da trajetória de Rudolph Valentino, embaralhando verdades e boatos, e evidenciando os elementos que sempre foram caros ao cinema de Russell.
À essa visão irrestrita do excesso (e, por que não, fascinada por ele também), o diretor acrescenta também uma conjectura dramática onde compreende que, se nenhuma tragédia é completa, nenhuma felicidade ou realização é completa também: Os sonhos mais puros e genuínos de Rudy (o de trazer sua mãe da Itália e de montar uma fazenda de laranjas) são aqueles que ele jamais chega a realizar.
Esta criação peculiar da dramaturgia nada usual de Ken Russell transforma Rudolph Valentino numa vítima das engrenagens desumanas e massacrantes do show business em meio a uma trajetória onde o diretor nos convida a observar com certo sadismo suas passagens mais absurdas e espalhafatosas, e termina nos fazendo lamentar o seu amargo fim.

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