Se soa, à princípio, contraditória a ideia de
Nicolas Roeg conceber uma comédia –ele que construiu densos e desafiadores
tratados cinematográficos sobre a condição humana em “Walkabout-A Longa
Caminhada”, “Inverno de Sangue Em Veneza” e “O Homem Que Caiu Na Terra” –logo,
“Malícia Atômica” nos prova que não: É, na verdade, tremendamente coerente o
tom, a verve e o conceito que ele executa nesta trama irreal, insólita e
improvável, mas em tudo e por tudo calcada na realidade e na existência (ou no
existencial).
Os personagens não recebem nomes em “Malícia
Atômica” –pois, eles prescindem deles!
Não ouvimos em momento algum o nome da
personagem interpretada por Theresa Russell (deliciosa, por sinal!), mas todos
os indícios confirmam ser ela Marilyn Monroe.
Também nunca ouvimos o nome do personagem de
Michael Emil (ele é, quando muito, chamado de ‘professor’), mas tudo indica ser
ele Albert Einstein.
Em meio às filmagens de “O Pecado Mora Ao Lado”
–reconstituídas rigorosamente pelo minimalista Roeg na cena inicial
–descobrimos que após a execução da famosa e tumultuada cena do vestido
esvoaçante, a atriz principal (que, não há dúvidas, é a Marilyn de Theresa
Russell) se fartou de todo o caos de bajulação e paparicação à sua volta e
resolveu sair rodando de carro naquela quente madrugada de 1953 em Nova York.
Termina assim, no Hotel Roosevelt, onde
pretende saciar seu desejo de fã e passar a noite com o ‘professor’ –ou seja,
Albert Einstein.
Outros personagens marcam presença e contribuem
com novas reflexões provocadas pelo encontro dessas duas notórias
personalidades: O marido da atriz, um jogador de beisebol truculento e bronco,
constantemente incapaz de lidar com o assédio em torno do símbolo sexual que é
sua esposa (Gary Busey interpretando o personagem que seria Joe Di Maggio); e
um senador inescrupuloso, anti-comunista e ávido por arrancar do ‘professor’ um
testemunho politicamente favorável no congresso (Tony Curtis no papel que
certamente seria o senador Joseph McCarthy).
Bastando em si mesmo com essa pérola de
premissa, o filme de Roeg assume a estrutura quase de uma peça teatral ao
concentrar sua ação no quarto do perplexo professor, teoricamente
inteligentíssimo, mas incapaz de lidar com a sensualidade mundana e
absolutamente eficiente que a atriz exerce sobre ele.
São dinâmicas primorosamente trabalhadas: Há,
na reflexão oculta do diretor Roeg por trás do gracejo, uma espécie de
percepção igualitária. Se Marilyn Monroe e Albert Einstein, inicialmente
parecem completamente distintos em suas tão identificáveis caracterizações (e
eles de fato o são), há também similaridades não tão aparentes, como a aflição
acarretada pela fama, a carência incondicionalmente humana e a empatia.
Com efeito, se Di Maggio é visto (e hoje muito
mais conhecido) como o cara que casou-se com Marilyn Monroe, ele também surge
como um dos rejeitados por ela (pois seus chiliques de estrela o atingem
também) e, ao fim, percebe amargamente que sempre estiveram em funcionamento as
engrenagens que terminariam o separando dela em definitivo.
Roeg só não passa a mão na cabeça do Senador
McCarthy, mostrado como um político hábil para distorcer a oratória em prol de
seus próprios interesses e o perpetrador virulento do único (e terrível)
momento de violência do filme.
Todos esses personagens,
com suas entradas e saídas de cena, têm suas reflexões mais íntimas
intercaladas na narrativa por sequências que ilustram, de uma forma ou de
outra, seu passado, seus temores mais ancestrais e seus anseios mais primitivos
–a pressão paterna de Di Maggio, o fanatismo de McCarthy oriundo desde a
juventude, os abusos voluntários ou involuntários sofridos por Marilyn, o
terror de Einstein de que seu conhecimento deflagre a Terceira Guerra Mundial
–são essas percepções, detalhes e sutilezas que incrementam o filme brilhante
concebido por Roeg, e que fazem valer a pena suas inúmeras revisões, ao fim das
quais ele sempre brindará o expectador com uma nova descoberta.
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