Acumulando as funções de produtores, roteiristas e diretores, a dupla Michael Powell e Emeric Pressburger enfileiraram grandes obras cinematográficas nos anos 1940 e 50, esbanjando um refinamento visual todo particular.
Uma característica bastante recorrente era o emprego de cores quentes atreladas a um significado muito especial junto à narrativa.
Em “Narciso Negro”, essas cores quentes, como o vermelho, simbolizam acima de tudo o desejo sexual e a lascívia, outrora soterrados por uma vida de abnegação e penitência.
Com efeito, quase não vislumbramos dessa cor quando a trama tem início, no momento em que a virtuosa Irmã Clodagh (Deborah Kerr) recebe a honraria de Madre Superiora. Ela passará a liderar um convento cuja missão é instalar-se nas dependências improváveis do que antes havia sido um palácio nos altos cumes das montanhas do Himalaia.
O lugar em si já possui vestígios da contravenção que a fé religiosa não permite que as freiras deixem entrar em suas vindas: As paredes são adornadas por desenhos de mulheres em atitudes de cunho sexual.
A própria população tampouco ajuda na aclimatação: Tão exóticos para elas quanto as freiras devem parecer para eles, os aldeões possuem uma cultura que distingue completamente o lugar dos mosteiros espartanos nos quais as freiras estavam habituadas a sufocar seus dilemas.
A Irmã Clodagh, vinda de um desiludido desenlace amoroso (melhor esclarecido em flashbacks), procura vencer essa inadequação, mas mesmo ela não está livre de tentações: Designado a prestar-lhes assistência, o instruído funcionário do governo Sr. Dean (David Farrar) instiga tormentos inesperados em Clodagh, ora desdenhando da possibilidade das freiras em se manter ali por muito tempo, ora provocando-a com sua mera presença masculina.
Outros elementos agravarão a situação: A chegada de um jovem, imaturo e inexperiente general –cuja patente foi herdada do pai falecido! –que adentrará o convento em busca da instrução ocidentalizada das freiras, ostentando seu exotismo e sua exuberância no jeito de ser de seu povo (elas chegam a apelidá-lo de ‘narciso negro’!) e, sobretudo, a instabilidade da Irmã Ruth (Kathleen Byron, de “Twins Of Evil” e “Emma”) potencializada por uma rivalidade quase natural com a Irmã Clodagh, por uma atração cada vez mais irreprimível e não correspondida pelo Sr. Dean (ao que parece, ele prefere a Irmã Clodagh...) e pela chegada da atrevida Kanchi (Jean Simmons, bem novinha), expulsa de sua família devido ao mal comportamento.
Esses fatores em sucessão, em maior e menor grau, abalam as convicções de praticamente todas as freiras –trabalhadas com minúcias inteligentes e de ordem magnificamente visual pela narrativa –mas, tudo se intensifica quando surge à porta delas uma criança com febre.
Já lhes tinha recomendado o Sr. Dean: “Se aparecer alguém doente que não tenham condições de salvar, nem tentem fazê-lo...”
Ele sabia que os montanheses, tão supersticiosos quanto rigorosos, não tolerariam as freiras se um doente perecesse em suas mãos –eles rejeitariam prontamente o convento julgando que a morte seria culpa delas.
Contudo, uma das freiras trata a criança enfebrada escondida da Irmã Clodagh e das demais. Quando a criança morre, a intolerância da população recai sobre elas e a atmosfera de tensão resultante leva a Irmã Ruth a dar um basta na resignação de seu celibato.
Construído em torno de contundentes simbolismos, a obra de Powell e Pressburger, ao mesmo tempo que visita uma diferenciada cultura lançando notáveis ênfases sobre suas práticas e pontos de vistas, também compõe uma reflexão sobre o eterno conflito do ser humano em sua relação com a religião e na dicotomia incompatível entre o espiritual e o físico.
Algumas das cenas que eles criaram para este filme representam, sob alguns dos aspectos mais ilustrativos e transparentes do cinema, a aflição humana perante o embate existencial das forças abstratas da natureza e da fé –diante de todo esse mérito e propriedade, a vitória merecidíssima do Oscar 1948 de Melhor Fotografia foi uma barbada.
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