terça-feira, 17 de março de 2020

A Mulher do Lado

François Truffaut teve a ideia para realizar “A Mulher do Lado” quando viu, durante a apresentação de um prêmio, a imensa química que partilhavam sua esposa a atriz Fanny Ardant e o astro francês Gerard Depardieu.
Com efeito, o cinema de Truffaut é tão mais funcional e eficaz quando ele gira em torno do fascínio por uma mulher –assim foi com Jeanne Moreau em “Jules e Jim” e com Jacqueline Bisset em “A Noite Americana”; assim é aqui.
O prólogo narrado com minimalismo literário por Véronique Silver, intérprete da Sra. Odile Jouve, já anuncia a tragédia vindoura. O filme retrocede assim, em forma de flashback para mostrar a rotina de Bernard (Gerard Depardieu) e sua esposa Arlette (Michele Baumgartner), com seu filho pequeno Thomas, que é ligeiramente transformada com a chegada do casal Philippe (Henri Garcin) e Mathilde (Fanny Ardant) para morar na casa ao lado da sua.
Embora ambos escondam de seus cônjuges (e durante algum tempo até do expectador) vai ficando claro aos poucos que Mathilde e Bernard já haviam se conhecido antes.
Eles foram amantes.
E, durante a juventude, experimentaram um romance tão intenso e arrebatador que quase os consumiu. Embora tenham passado anos sem se verem, a mera presença um do outro deixa Bernard e Mathilde abalados.
Inicialmente, Bernard faz o possível para evitá-la. Um encontro casual num supermercado, entretanto, reacende seu desejo. Eles passam a se encontrar no quarto 18 de um hotel. Contudo, sua relação nunca foi harmoniosa, nem destinada a terminar com calmaria.
Amparado nas referências mais clássicas dos amores avassaladores à sua disposição, Truffaut, à sua maneira passional e transparente, dá corpo, voz e identidade às dores de amor de seus protagonistas, plenamente consciente de que seu filme e os propósitos que o cercam estão a serviço de seu casal central. E, de fato, a belíssima Ardant e o sempre magistral Depardieu se encontram em estado de graça; compondo personagens corriqueiros em sua absoluta serenidade, mas agregando a eles camadas de complexidade e neuroses imprevistas a medida que o roteiro investiga seus tormentos íntimos.
É uma união quase milagrosa de duas facetas extremas e caras ao cinema de Truffaut: De um lado, a delicadeza de olhar para o cotidiano, para as janelas ao lado das nossas, e ali enxergar matéria para o cinema mais puro, herança que Truffaut carregou da novelle vague francesa e manipulou e transfigurou até dar a ela sua própria personalidade; de outro, o amor em suas imbricações mais minuciosas, na angústia que transforma as tardes que não passam numa eternidade, no constrangimento que nos leva a espreitar outrem qual um espião, nos subterfúgios que criamos para enganar a nós mesmos.
“A Mulher do Lado” é, pois, uma versão amena e singela das obras rasgadas e comiserativas do romantismo literário: Ele tem dor e desassossego, tudo isso acompanhando a relação de um amor que não se acomoda na monotonia, mas tem também sutileza e cuidado ao apresentar essa premissa numa síntese familiar e confortável para a qual o expectador se abre deixando-se afetar por suas emoções.
E isso é a essência do cinema de Truffaut.

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