quarta-feira, 29 de abril de 2020

Disque Butterfield 8

O filme começa misterioso. Gloria (Elizabeth Taylor equilibrando com perfeição sensualidade e profundidade) acorda num quarto de hotel. Quem ela espera encontrar ali já não está. Deixou-a sozinha. Ela checa seu serviço telefônico de mensagens –Butterfield 8 –e sai porta afora, não sem antes fazer uma travessura e levar consigo um casaco de peles tirado de dentro o armário.
As pistas está lá, mas não muito claras, propositadamente deixadas oblíquas por uma névoa de elegância, da qual filmes bem posteriores tiveram a chance de abrir mão.
Pela época a que pertence, e pela severa patrulha ideológica do Código Hays de então (1960), muitos são os detalhes que o melodrama dirigido por Daniel Mann não pode verbalizar nem escancarar ao público –no entanto, o simples fato de tornar tais elementos centrais à premissa e essenciais à protagonista já acarretam ousadia o bastante para esta produção.
Gloria é, pois, uma espécie de garota de programa (o quê demanda a imensa coragem da estrela Elizabeth Taylor em assumir o papel); não exatamente um garota de programa propriamente dita, mas uma jovem que encontrou na grande beleza o único meio de perseguir uma vida plena de realização –e por consequência, um marido rico –deixando-se, com isso, enredar nas garras da promiscuidade.
Ela até rejeita o pagamento em dinheiro que Ligget (Laurence Harvey) quis deixar pela noite que passou com ela, mas ao longo do filme e de seus encontros com o próprio Ligget, com seu melhor amigo Steve (o cantor Eddie Fisher, pai de Carrie Fisher, e que deixou a esposa Debbie Reynolds por conta de um caso com Elizabeth Taylor) e com sua aflita mãe (Mildred Dunnock), ficará bastante claro para Gloria, para os outros personagens à sua volta e para o expectador que as circunstâncias que a acercam se aproximam muito do que pode ser chamado prostituição.
Com base nesse enredo audacioso, “Disque Butterfield 8” trabalha da melhor forma que pode as dinâmicas que se ramificam ao redor de Gloria: Steve, que a ama ao seu jeito e deseja cuidar dela, alimenta com isso o ressentimento da próprio namorada Norma (Susan Oliver). Sua mãe, que tentou criá-la bem a despeito da ausência do pai que morreu cedo –e nisso descobriremos, mais ao fim, as pistas para o comportamento algo auto-destrutivo de Gloria –vive preocupada com suas intensas incursões nessa vida, e tem apenas o nada benevolente ombro da amiga Sra. Thurber (Betty Field, de “Férias de Amor”) para chorar as mágoas. O próprio Ligget, alvo de Gloria para obter a vida melhor que almejava, tem seus próprios problemas; a boa vida de ricaço que desfruta só é possível graças ao casamento que o atrelou a uma mulher que não ama (Dina Merrill), a um emprego de fachada, e a uma rotina onde a submissão e a servidão são mascaradas por bebedeiras, gastos e casos extra-conjugais –e embora o personagem seja naturalmente apático poderia até ganhar um pouco mais de simpatia do público não fosse a atuação mecânica e desanimada de Laurence Harvey.
A segunda parte captura Gloria e Ligget tentando lidar com a paixão verdadeira que surge entre eles naqueles tempos tão cínicos. E como não poderia deixar de ser, os pequenos detalhes estão lá, desde o começo, a sedimentar o caminho que haverá de afastá-los.
De um modo geral, são todos personagens escritos, construídos e interpretados com zelo, contudo, o roteiro de Charles Schnee e John Michael Hayes (a partir do livro de John O’Hara) não se harmoniza à perfeição com a direção de Mann a ponto de moldar uma narrativa totalmente absorvente: O filme, por vezes, se compromete numa apatia, em parte originada da abordagem elíptica de seu conteúdo.
Certamente, a atuação de Elizabeth Taylor destaca-se; ela constrói uma personagem de camadas que vão se revelando (e desconcertando o expectador) ao longo da trama, sem nunca cair em armadilhas óbvias e mantendo sempre uma coerência louvável, uma humanidade vívida e um magnetismo autêntico; para os expectadores de hoje, talvez, sua caracterização pareça perfeita e vistosa demais para a personagem em rota de franca dissolução que interpreta, mas eram tempos que preferia-se a sutileza ao despojamento e, certamente, a sugestão ao escândalo –por tal equilíbrio e propriedade, ela arrebatou o Oscar 1961 de Melhor Atriz.

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