sábado, 16 de maio de 2020

Tempos de Viver

Quem está acostumado à maestria com a qual Zhang Ymou entregou obras magistrais de forma praticamente simultânea durante os anos 1990 pode estranhar a comodidade com a qual ele narra esta saga familiar, quase a parecer um novelão.
Sua genialidade aparece somente na cena da chegada do Exército Vermelho em meio às montanhas, e quando muito na grande atuação de Ge You, agraciado com a Palma de Melhor Ator no Festival de Cannes 1994 –o filme também levou o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio Ecumênico; certamente um posicionamento do Festival diante do repúdio que o trabalho de Ymou, de um contundente teor crítico para com o regime chinês, sofreu em seu país-natal.
Em sua estrutura folhetinesca, “Tempos de Viver” narra a trajetória de uma família em tintas convencionais e presumidamente épicas, começando com as figuras que constituirão seus patriarcas, os então jovens apaixonados Fuqui (Ge You) e Jiazhen (a deslumbrante Gong Li em seu quinto filme com o diretor).
Filho de uma família abastada na China capitalista dos anos 1940, Fuqui é abandonado pelos pais quando não consegue mais controlar sua compulsão para jogos, perdendo tudo que tinha para o apostador Long’er –a própria Jiazhen também o abandona com a filha dos dois ainda pequena, Fengxia, nos braços e grávida do seu segundo filho, Youqing.
Eventualmente, Jiazhen acaba retornando para Fuqui, enquanto este ganha a vida como camelô, de forma periclitante e árdua.
A família vive assim, naquela China mergulhada em desigualdade, sustentando-se do show de sombras que Fuqui apresenta nas ruas enquanto seus filhos vão crescendo. Já em meados dos anos 1950, Fuqui é recrutado pela exército nacionalista para lutar como soldado contra o Exército Vermelho de Mao Tsé Tung.
Com o fim dessas hostilidades e a ascensão da China comunista, Fuqui –agora de volta ao lar –e Jiazhen tentam se adaptar ao novo regime e, pautada sempre por essas transformações sociais e políticas, a trajetória de toda sua família vai encontrando outras tragédias em seu caminho; inclusive devidos às escolhas sentimentais e ideológicas feitas por Fengxia e Youqing.já depois de adultos –momentos estes transfigurados em cenas de considerável teor poético, como o casamento de Fengxia; as manifestações de oposição nas ruas; as sequências coletivas, seja de revolucionários, seja de soldados (uma especialidade de Ymou); ou a cena em que Fengxia está em trabalho de parto num hospital onde só há estudantes (!).
Zhang Ymou e sua estrela Gong Li, pelo filme que fizeram e pela postura transparente que adotaram ao ilustrar inúmeras mazelas acarretadas à população em consequência da Revolução Cultural foram banidos da China por dois anos.
O diretor narra com certa paixão essa saga ambientada ao longo de três décadas de conturbadas mudanças na China, convidando o expectador a descobrir os pormenores históricos vivenciados pelo cidadão comum sob a ótica de uma família, e impondo uma identificação com seus personagens.
Ele evidencia, com este trabalho, sua notável formação como diretor de fotografia, mas atribui demasiada confiança à dramaturgia que constrói neste roteiro: Se suas obras anteriores com Gong Li (“Sorgo Vermelho”, de 1987, “Amor e Sedução”, de 1990, “Lanternas Vermelhas”, de 1991, e “A História de Qiu Ju”, de 1992) eram brilhantes peças de inquestionável cinematografia, em “Tempos de Viver” sua direção se acomoda um pouco mais no roteiro, confiante na abrangência épica de uma trama que passeia por gerações. Certamente, tem o poder de emocionar, sobretudo, os expectadores mais adeptos do melodrama, mas não ombreia a excelência da sucessão espetacular de trabalhos que ele vinha entregando até então.

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