Antes de entregar um derivado de qualidade
inconteste da série “Rocky”, em “Creed”, antes de realizar um dos melhores
filmes da Marvel Studios, obtendo a histórica primeira indicação ao Oscar de
Melhor Filme para uma adaptação de histórias em quadrinhos, em “Pantera Negra”,
o diretor Ryan Coogler mostrou a que veio neste drama independente, uma austera
e emotiva reconstituição das últimas horas de vida do americano Oscar Grant,
cujo assassinato, pelas mãos ineptas e despreparadas de policiais truculentos
na Estação Bart Fruitvale, em Los Angeles, ocorrido na manhã de 1º de janeiro
de 2009, deu início a uma série de protestos raciais nos EUA –um filme que,
pelas pertinentes circunstâncias que o cercam, dialoga muito com o presente, e a
indignação suscitada pela morte de George Floyd, em condições parecidas.
O filme se inicia com uma gravação documentada
numa câmera de celular, mostrando a cena que chocou milhares de pessoas, onde
um cidadão negro é alvejado sem justificativa por policiais que o prenderam, e
a seus amigos, sem qualquer acusação.
A história começa pouco menos de 24 horas
antes. Oscar (o formidável Michael B. Jordan) está tentando dar estabilidade ao
relacionamento com a namorada Sophina (Melonie Diaz, de “Os Reis de Dogtown”)
com quem tem uma filha, a pequena Tatiana (Ariana Neal). Com sua habilidade
dramática, o diretor Coogler consegue mostrar em poucas cenas o contexto
mundano de dramas e agonias cotidianas do casal: Além do fantasma de uma
traição a assombrá-los, Oscar perdeu o emprego e tem lá suas conexões com a
criminalidade para atormentá-lo –possibilidades corruptíveis que sempre parecem
seduzir quando ele se encontra no desespero do desemprego e da impossibilidade
de cuidar da própria mulher e filha.
É o dia 30 de dezembro de 2008. E é também o
aniversário de sua mãe, Wanda, vivida pela sempre magnífica Octavia Spencer.
Na vicissitude de uma vida comum, Oscar vai ao
mercado fazer comprar –onde precisa praticamente implorar, sem muitos
resultados, para tentar recuperar o emprego que perdeu –roda com o carro por
L.A., e até mesmo cogita vender droga para ter algum dinheiro no bolso; opção
da qual as amargas lembranças de sua prisão, anos antes, o fazem desistir.
Numa cena particularmente notável, ele procura,
em vão, ajudar um cachorro, atropelado por um motorista inconsequente –o
sofrimento do animal, a aflição de Oscar e a absoluta ausência de quaisquer
outras pessoas em cena, simbolizam com contundência a denúncia do diretor
Coogler para a nociva falta de empatia que os seres humanos tiveram por hábito
cultivar em sociedade nas últimas décadas.
À noite, Oscar e Sophina vão à casa de Wanda
comemorar seu aniversário –e, de novo, surpreende o expectador, a maneira com
que a condução serena e impecável de Coogler consegue arrancar espontaneidade
do elenco em interação.
“Fruitvale Station” é um registro de uma
comunidade em particular, seus ritos, seus hábitos, suas vidas e suas
turbulências, seus humores e seus contratempos; o porque deles falarem como
falam, agirem como agem e se vestirem como se vestem, e do porque têm o direito
de não serem julgados por isso.
A cena fatídica na Estação Bart Fruitvale se
aproxima calma e dolorosamente –porque até lá, o diretor já nos tornou próximos
de Oscar, já fez dele alguém que conhecemos e por quem nos importamos; e nos
fez saber, desde o princípio, que seu fim será amargo.
O retrato do momento em que toda a tragédia se
deflagrou –reconstituído em justaposição á cena verdadeira vista no começo do
filme –é de uma execução primordial, tamanho seu minimalismo, sua precisão e,
em contraponto, a capacidade peculiar do diretor em encontrar mesmo ali uma
emoção sincera, absolutamente despida de sentimentalismos e manipulações
romantizadas.
“Fruitvale Station” levanta
questões que sempre haverão de nos importar enquanto sociedade, exige respeito
e admiração pela realização profissional e brilhante da parte de todos os
envolvidos a frente e atrás das câmeras, e consegue comover com a preciosidade
do retrato humano e próximo que faz de seres humanos como eu e você.
Nenhum comentário:
Postar um comentário