quinta-feira, 2 de julho de 2020

Fruitvale Station - A Última Parada

Antes de entregar um derivado de qualidade inconteste da série “Rocky”, em “Creed”, antes de realizar um dos melhores filmes da Marvel Studios, obtendo a histórica primeira indicação ao Oscar de Melhor Filme para uma adaptação de histórias em quadrinhos, em “Pantera Negra”, o diretor Ryan Coogler mostrou a que veio neste drama independente, uma austera e emotiva reconstituição das últimas horas de vida do americano Oscar Grant, cujo assassinato, pelas mãos ineptas e despreparadas de policiais truculentos na Estação Bart Fruitvale, em Los Angeles, ocorrido na manhã de 1º de janeiro de 2009, deu início a uma série de protestos raciais nos EUA –um filme que, pelas pertinentes circunstâncias que o cercam, dialoga muito com o presente, e a indignação suscitada pela morte de George Floyd, em condições parecidas.
O filme se inicia com uma gravação documentada numa câmera de celular, mostrando a cena que chocou milhares de pessoas, onde um cidadão negro é alvejado sem justificativa por policiais que o prenderam, e a seus amigos, sem qualquer acusação.
A história começa pouco menos de 24 horas antes. Oscar (o formidável Michael B. Jordan) está tentando dar estabilidade ao relacionamento com a namorada Sophina (Melonie Diaz, de “Os Reis de Dogtown”) com quem tem uma filha, a pequena Tatiana (Ariana Neal). Com sua habilidade dramática, o diretor Coogler consegue mostrar em poucas cenas o contexto mundano de dramas e agonias cotidianas do casal: Além do fantasma de uma traição a assombrá-los, Oscar perdeu o emprego e tem lá suas conexões com a criminalidade para atormentá-lo –possibilidades corruptíveis que sempre parecem seduzir quando ele se encontra no desespero do desemprego e da impossibilidade de cuidar da própria mulher e filha.
É o dia 30 de dezembro de 2008. E é também o aniversário de sua mãe, Wanda, vivida pela sempre magnífica Octavia Spencer.
Na vicissitude de uma vida comum, Oscar vai ao mercado fazer comprar –onde precisa praticamente implorar, sem muitos resultados, para tentar recuperar o emprego que perdeu –roda com o carro por L.A., e até mesmo cogita vender droga para ter algum dinheiro no bolso; opção da qual as amargas lembranças de sua prisão, anos antes, o fazem desistir.
Numa cena particularmente notável, ele procura, em vão, ajudar um cachorro, atropelado por um motorista inconsequente –o sofrimento do animal, a aflição de Oscar e a absoluta ausência de quaisquer outras pessoas em cena, simbolizam com contundência a denúncia do diretor Coogler para a nociva falta de empatia que os seres humanos tiveram por hábito cultivar em sociedade nas últimas décadas.
À noite, Oscar e Sophina vão à casa de Wanda comemorar seu aniversário –e, de novo, surpreende o expectador, a maneira com que a condução serena e impecável de Coogler consegue arrancar espontaneidade do elenco em interação.
“Fruitvale Station” é um registro de uma comunidade em particular, seus ritos, seus hábitos, suas vidas e suas turbulências, seus humores e seus contratempos; o porque deles falarem como falam, agirem como agem e se vestirem como se vestem, e do porque têm o direito de não serem julgados por isso.
A cena fatídica na Estação Bart Fruitvale se aproxima calma e dolorosamente –porque até lá, o diretor já nos tornou próximos de Oscar, já fez dele alguém que conhecemos e por quem nos importamos; e nos fez saber, desde o princípio, que seu fim será amargo.
O retrato do momento em que toda a tragédia se deflagrou –reconstituído em justaposição á cena verdadeira vista no começo do filme –é de uma execução primordial, tamanho seu minimalismo, sua precisão e, em contraponto, a capacidade peculiar do diretor em encontrar mesmo ali uma emoção sincera, absolutamente despida de sentimentalismos e manipulações romantizadas.
“Fruitvale Station” levanta questões que sempre haverão de nos importar enquanto sociedade, exige respeito e admiração pela realização profissional e brilhante da parte de todos os envolvidos a frente e atrás das câmeras, e consegue comover com a preciosidade do retrato humano e próximo que faz de seres humanos como eu e você.

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