domingo, 30 de agosto de 2020

O Quinto Elemento

Apesar do grande filme que é, pode-se dizer que “O Profissional” foi uma estréia discreta para o francês Luc Besson no cinema norte-americano; ambição mesmo, ele veio a demonstrar no seu projeto seguinte, a amalucada ficção científica “O Quinto Elemento”.
Oriundo de uma ideia que Besson teve ainda na adolescência, o roteiro (ignorante de vários conceitos científicos e históricos que já propunham a existência de um ‘quinto elemento’) se irmana ao primeiro longa-metragem de Besson, “O Último Combate”, devido à sua estética profundamente influenciada por quadrinhos europeus, como ficará perceptível mais à frente, com nítidas referências ao estilo dos artistas Moebius (um dos desenhistas de produção) e Enki Bilal.
O roteiro de Besson, travesso e inconsequente, começa no ano de 1914, quando arqueólogos  estudando uma pirâmide egípcia (um deles sendo Luke Perry, da série “Barrados No Baile”) têm um estranho contato imediato com seres alienígenas; tais seres, os Mondoshawans, advertem o padre ali presente de que, dentro de 300 anos, um mal iminente surgirá para destruir a vida, e o templo contêm instruções para preparar a arma  que irá rechaçá-lo, na qual os quatro elementos essenciais à vida (o ar, a água, o fogo e a terra), representados por pedras sagradas que eles levam embora por não confiarem nos humanos, devem ser depositados ao redor de um quinto (e desconhecido) elemento. Todas as perguntas, eles prometem responder quando a hora chegar.
Deveras, a narrativa avança 300 anos no tempo, quando naves espaciais humanas registram de fato a aproximação do que parece ser um planeta incandescente com rota fixada de colisão contra a terra. Ataques contra esse planeta só o fazem crescer ainda mais. Então, o Padre Vito Cornelius (Ian Holm) surge contando a história acerca da profecia extraterrestre –que lhe foi passada através de outros guardiões desse segredo.
Os Mondoshawans até tentam contato com a humanidade, mas são destruídos num atentado de autoria do perverso Zorg (Gary Oldman), o vilão da vez, cujos motivos jamais são realmente esclarecidos.
Apenas um membro é recuperado dos alienígenas benevolentes e, ao tentar restaurá-lo a partir da avançada engenharia genética, os cientistas terrestres criam a personagem de Milla Jovovich, Leeloo, uma criatura segundo eles perfeita, que em nada lembra os alienígenas jocosos e nada humanos a partir dos quais foi criada.
Ela vem a ser o ‘quinto elemento’.
Por qual razão? Ela tem poderes? Então, um dos alienígenas era outrora o ‘quinto elemento’ também? Nada disso fica muito claro, e provavelmente, Luc Besson concebeu essa premissa sem preocupar-se em se aprofundar em questionamentos plausíveis como esses...
Os poderes de Leeloo oscilam conforme o momento –numa hora tem força e agilidade sobrehumanas, em outro, quando é conveniente que seja a mocinha em perigo, não tem mais... –assim sendo, sem também ter muita explicação, ela resolve fugir do laboratório onde foi criada e, do lado exterior do belo mundo futurista executado por Besson e sua equipe, Leeloo acaba caindo dentro do táxi dirigido pelo protagonista da história, Korben Dallas (Bruce Willis, num personagem sem sombra de dúvidas inspirado em Harry Canyon, personagem de um dos primeiros episódios da animação “Heavy Metal-Universo Em Fantasia”).
Este, por sinal, é um protagonista inserido da forma mais paradoxalmente aleatória e arbitrária já vista em uma produção comercial –os caminhos dele e de Leeloo se cruzam por pura conveniência do roteiro, sem qualquer disfarce ou subterfúgio, e para tornar a coisa ainda mais incômoda, isso ocorre duas vezes (!).
Sim, pois, Leeloo –que inicialmente não fala a língua humana –é, afinal, levada por Korben ao padre Cornelius a fim de darem continuidade à sua missão. E então... a utilidade do personagem de Willis se acaba! Sobretudo, porque, como todo protagonista de ação descolado, ele não faz muita questão de ajudar os que precisam de ajuda.
Assim, ele volta para sua casa e, pela segunda vez, é inserido na mesma trama de forma completamente arbitrária –num dos inúmeros lapsos do roteiro que tornam duvidosos os esforços em convencer o público –quando ele é requisitado por militares (ele era um ex-operativo de Forças Especiais, trabalhando de taxista...) para encontrar as tais pedras, aquelas que representavam os quatro elementos e que foram perdidas.
As pedras, na verdade, foram confiadas a uma artista-cantora alienígena chamada Plavalaguna (Maïwenn Le Besco), cuja concorrida apresentação se dará no planeta Fhloston –quando então entregará as pedras aos humanos. Os militares providenciam assim uma passagem para Korben, que acaba entrando na mira de Zorg, desejoso de obter a passagem para si; de Leeloo e do padre Cornelius, que desejam dele extrair a passagem também; e da raça extraterrestre dos Mangalores, guerreiros, brutamontes e ineptos que também querem se apropriar das pedras (e, ao que parece, todos os personagens do filme concluem que a única maneira de ir à Fhloston é roubando as passagens de Korben!).
Após as confusões, que transformam por um tempo “O Quinto Elemento” numa comédia de erros ao invés da aventura de ficção científica que aparentava ser, Korben e Leeloo seguem para Fhloston, onde encontram Plavalaguna –numa inusitada cena musical que acrescenta doses de estranheza ao culto do filme –e o personagem de um bizarro e andrógeno radialista extraterreno vivido por Chris Tucker. Os núcleos tumultuados de antagonistas e protagonistas convergem para o tal Paraíso Fhloston, uma espécie de hotel espacial, onde se sucede a apresentação de Plavalaguna e a primeira cena de ação de fato de “O Quinto Elemento” –isso quando o filme já adentra sua reta final!
A verdade é que essa impressão algo equivocada, de que “O Quinto Elemento” seja um ficção científica de ação (erro que alguns expectadores cometem até hoje) se dá pela presença de Bruce Willis –um dos astros de então que foi imposto ao diretor Besson pelo estúdio da Columbia Pictures sob condição de financiarem seu filme.
“O Quinto Elemento” é, sim, uma fantasia de orientações desconcertantes, desafiadoras para qualquer paradigma de gênero, com elementos bastante comuns aos filmes europeus que Besson concebeu na década anterior, a de 1980. Aqueles que se ancorarem numa pressuposta coerência em sua história ou no encadeamento de seus acontecimentos correm o risco de ficarem um bocado irritados. Para apreciá-lo, deve-se focar nos aspectos que realmente o transformaram num cult-movie: No visual incomum (de um “Blade Runner” à luz do dia, ou de uma história em quadrinhos européia), cortesia do bom trabalho do diretor de fotografia Thierry Arbogast, em sintonia com as inquietações estéticas muito singulares de Luc Besson; na trama tão juvenil quanto abilolada (e ainda assim pretensamente intrincada) onde só importa uma certa diversão; e na presença refrescante da estreante (e belíssima) Milla Jovovich que, se por um lado incumbe-se de uma personagem que se equilibra no abismo da inverossimilhança injustificada, por outro, brinda o filme de ponta a ponta com seu carisma e seu encanto, num reflexo do que Natalie Portman também já fazia em “O Profissional”.

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