sexta-feira, 14 de maio de 2021

Conflito das Águas


 O filme dirigido por Iciar Bollain se pretende ambicioso: “Conflito das Águas” começa –e em sua totalidade, meio que assim permanece –como uma espécie de “8 ½ de Fellini” onde está em foco a realização de um filme, os lapsos sonhadores de seu diretor e os contratempos inevitáveis a serem enfrentados. Assim, esse aspecto do filme introduz seus dois protagonistas, Costa, o produtor (o ótimo Luis Tosar), e Sebástian, o diretor (Gael Garcia Benal), ambos incumbidos de filmagens emblemáticas de um filme sobre o agressivo processo de colonização espanhola na América do Sul.

Guiado por devaneios artísticos, Sebástian insiste em filmar as cenas em locação, rumando com equipe, elenco e o perplexo Costa para a cidade de Cochabamba, na Bolívia. E aí, no ponto em que as agruras da metalinguagem encontram as periclitantes condições da vida real –em especial, as árduas circunstâncias de subsistência do povo boliviano –o filme de Iciar Bollain começa a expor sua outra faceta: Paralelo ao ‘filme dentro do dentro’ (do qual flagramos, inclusive, cenas inteiras, a testemunhar Cristovão Colombo, vivido pelo ator Karra Elejalde, e a truculência injustificada com a qual os espanhóis abusaram do povo indígena) acompanhamos a seleção de elenco onde os realizadores insistem em colher indivíduos da população –e, portanto, autênticos –para personificar os índios.

Um desses indivíduos, Daniel (Juan Carlos Aduviri), mostra-se tão imbuído de paixão e motivação que Sebástian o escolhe para o importante papel de Hatuey, líder dos índios em sua malfadada rebelião contra o poderio espanhol de séculos atrás. Há um porém: Daniel é, também ele, um líder entre os moradores de Cochabamba que sofrem pelo domínio de água pelos governantes, deixando a população sedenta e à beira de uma revolta.

Se na maior parte do tempo, “Conflito das Águas” parece dividir-se entre esses dois pólos  mantidos deliberadamente distintos –a filmagem oscilante entre o cotidiano da equipe técnica, os objetivos sonhadores do diretor e o zelo prático do produtor; além da luta dos cidadãos de Cochabamba por condições de vida minimamente satisfatórias –a partir de seu último terço aproximadamente, essas duas linhas narrativas começam a se entrecruzar num único e aflitivo fio condutor: Daniel, líder dos protestos cada vez mais violentos que se seguem –e que ameaçam mergulhar e cidade num estado de sítio, perigoso à permanência da equipe cinematográfica ali –é capturado por policiais, comprometendo a execução de algumas cenas-chaves do filme.

Realmente é num crescendo formidável de suspense que a narrativa de Bollain vai trabalhando as dinâmicas entre esses três personagens, Costa, Daniel e Sebástian, enquanto estão em pauta questões como a consciência social, o engajamento artístico e a própria analogia histórica entre injustiças de ontem, de hoje e de sempre. O ápice desse trabalho se dá quando Belén (Milena Soliz), a filha de Daniel, se vê ferida e desamparada no centro da cidade levando o aturdido Costa a tentar  ultrapassar bloqueio após bloqueio para resgatá-la e levá-la até um hospital enquanto deixa em espera a equipe com Sebástian, todos mergulhados numa apavorante incerteza.

Se há méritos incontestes nessa tensa terceira parte, é verdade também que o filme desperdiça muito tempo até chegar lá e ficar bom de verdade, comprometendo-se sobretudo pelo fato de que não há um personagem afável o bastante para nele o expectador se agarrar –Costa, o mais próximo de algo assim, vai experimentando uma sutil metamorfose ao longo do  filme, no qual deixa o egoísmo e a apatia de lado para adquirir princípios, e por isso mesmo, leva tempo para o público gostar dele.

É um trabalho bastante competente o da diretora Iciar Bollain (que atuou como atriz em “Terra e Liberdade”, de Ken Loach), entretanto o tempo gasto para dizer a que veio e os desvios de caminho onde explora, sem modéstia, os desdobramentos um tanto pretensiosos de sua proposta comprometem o todo, fazendo grande parte dele soar como enrolação.

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