segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O Sétimo Selo


 Nunca mais a representação da Morte foi tão icônica, tão precisa e tão aproveitada e reaproveitada quanto neste trabalho singular do mestre sueco Ingmar Bergman. Como todos aqueles raros clássicos maiores do que a vida, resenhar “O Sétimo Selo” é um trabalho desafiador –é constante a chance de cair na armadilha de enaltecer o tempo todo suas incalculáveis qualidades, de enfatizar a importância profunda que ele conquistou na cultura pop (algo tão mais notável quando lembramos tratar-se de um filme de arte sueco) e de averiguar as vastas ramificações imbuídas neste trabalho feito em estado de graça. Entretanto, talvez, a mais interessante observação a ser apontada sobre ele é que “O Sétimo Selo” difere, e muito, da grande totalidade da filmografia deste grande Bergman.

Quando se fala em Ingmar Bergman temos a imediata lembrança de obras densas e dramáticas, voltadas para as profundezas de uma angústia existencial, um vazio perene que acompanha a alma humana desde seus relacionamentos afetivos, até a lida com Deus e com sua fé, passando pelas considerações acerca da própria existência. É uma surpresa para muitos que vão conferir “O Sétimo Selo” depois de toda a mitologia e do folclore que o precede (e ao próprio Bergman) que ele não é nada disso. “O Sétimo Selo” é, sim, ocasionalmente gracioso –adjetivo garantido pela presença quase protagonista de uma família circense liderada por Nils Pope e pela bela Bibi Anderson que aclimatam o filme com leveza –ágil em seus desdobramentos narrativos e na habilidade com que se divide entre vários personagens e em sua estrutura episódica e, embora as dúvidas teológicas impronunciáveis de Bergman movimentem muito da narrativa (são, na verdade, sua razão de ser!), o diretor e roteirista não lhes nega humor, humanismo e certa ironia.

O fio narrativo principal é, claro, o personagem de Antonius Block que Max Von Sydow vivencia com a excelência que empregou em tantas outras colaborações com Bergman. Antonius é um cavaleiro das Cruzadas e, na travessia interminável e desolada de toda a Idade Média que constitui seu mundo, ele se cruza, num momento inevitável, com a.Morte. Figura soturna (de um contraste sombrio mesmo na monocromática fotografia em preto & branco), a Morte é vestida da cabeça aos pés com um manto negro, seu rosto branco (nas expressivas e apropriadas feições do ator Bengt Ekerot) lembra uma caveira e empunha, em muitos momentos, uma foice –quando Woody Allen referenciou esta marcante aparição em “A Última Noite de Boris Gruchenko”, nunca mais essa ideia visual de Bergman deixou de ser usada (vide “O Último Grande Herói” ). Antonius, numa rara sensatez diante do fim, tem assim uma ideia: Ele propõe um jogo de xadrez com a Morte, se ganhar, será poupado do inevitável fim –algo que tem assolado e muito a humanidade naqueles últimos tempos.

Dessa forma, com o jogo em prosseguimento, Antonius e seus escudeiros peregrinam a Europa Medieval, defrontando-se com situações fatalistas, assombrosas, frequentemente absurdas; o que leva o cavaleiro a concluir que a Morte, deveras, se encontra em todo lugar, e está a assombrar todos os seres humanos. E os únicos culpados são as próprias pessoas e a mentalidade que as levou até ali; não somente a Inquisição é justaposta como um agente indireto da Morte, na ideologia como opõe as pessoas umas contra as outras, mas também (e principalmente) a Peste Negra, a consumir aldeias inteiras, a ignorância, a levar todos a conclusões inacreditáveis e segregacionistas, o fanatismo religioso, opondo algozes e vítimas e o egoísmo, que faz com que esqueçam o pensamento coletivo e, em última instância, altruísta, não pensando como comunidade, mas em salvar, cada qual, a própria pele.

Sob esse prisma notável –e até hoje pleno de originalidade –Bergman elabora cena após cena, como num desfile de amostras absurdistas da insensatez moral à qual vez ou outra a humanidade se submete, num afresco que impressiona por nunca emular amargura ou uma angústia que seja insuportável demais ao público (diferente de seu dilacerante “Gritos e Sussurros”). Bergman vislumbra aqui, aos poucos e sem jamais perder sua objetividade, um punhado muito plural de personagens em eterna dicotomia com a idealização de Morte e, ao fim, com sua própria aparição diante de seus olhos, num momento tornado literal quando “O Sétimo Selo” chega, enfim, ao seu desfecho. Vemos o incontornável lamento de Antonius diante do silêncio divino, as dúvidas rasas e indiferentes de outros personagens, e a aceitação particularmente serena e fascinante de uma jovem, talvez a única a entender a constituição essencial que a Morte faz da Vida, mas vemos, acima de tudo, o grupo de artistas de circo, personagens que Bergman poupa para levar ao expectador as considerações mais otimistas possíveis; na sua visão, a arte, mesmo a mais popularesca, se prolonga para além das restrições metafísicas da Morte. As respostas para as perguntas universais –Deus está mesmo nos ouvindo? Para onde vamos após o invariável fim? Quem há de discernir os bons e os maus? –podem não importar tanto assim diante dessa magistral celebração das expressões artísticas em geral, e do cinema em particular.

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