sexta-feira, 18 de março de 2022

O Guardião de Memórias


 Um daqueles livros que, de tempos em tempos, caem nas graças do público leitor e viram fenômeno, “O Guardião de Memórias”, após influenciar um sem-fim de obras melodramáticas (incluindo telenovelas brasileiras!), ganhou uma adaptação pelas mãos do diretor Mick Jackson; de uma filmografia tão eclética quanto oscilante, com trabalhos como “O Guarda-Costas”, “Vulcano-A Fúria”, “L.A. Story” e “Ao Vivo de Bagdá”.

Nas mãos dele, a obra literária de Kim Edwards ganhou uma versão audio-visual efetiva, honesta, cheia de imperfeições, mas consciente de seu poder  de agradar o público ao qual se dirige desde que, na manutenção de seu drama, as cordas certas fossem puxadas.

Nele, há uma palpável predisposição para evocar os trabalhos do diretor Douglas Sirk, o mestre do melodrama norte-americano, tais como “Imitação da Vida”, “Sublime Obsessão” e “Tudo O Que O Céu Permite”. Na noite de 1964 em que Norah (a belíssima Gretchen Mol) dá à luz aos seus filhos gêmeos, uma série de acontecimentos definem para sempre a vida de todos os personagens ali envolvidos: Seu marido –que à propósito era médico ortopedista –David (Dermot Mulroney, de “Muito Bem Acompanhada”) e a enfermeira Caroline Gill (Emily Watson) se encontram sozinhos no pronto-socorro, fazendo com que apenas os dois tivessem ciência de que dentre o casal de gêmeos que acabara de nascer, Paul e Phoebe, a menina havia nascida com Síndrome de Down. Atormentado pela lembrança da irmã deficiente que morreu aos 12 anos, destruindo com isso a alegria de viver de sua mãe, David toma uma decisão extrema: À revelia de Norah, que desmaiou durante o parto e não ficou sabendo de nada, David orienta Caroline para que entregue a menina, naquela mesma noite, à uma casa de abrigo. Entretanto, Caroline segue sua consciência que não permite que ela deixe uma inocente criança recém-nascida num lugar precário e terrível. Ela passa a cuidar da criança como se fosse sua mãe. Paralelamente, David –que tem uma ligeira noção de que a filha seguiu viva e criada por Caroline em algum lugar dos EUA –leva Norah a acreditar que a filha morreu ainda no parto, crente que isso basta para que a esposa siga em frente.

Contudo, não é bem isso que acontece: Nos anos que se seguem, a medida que a narrativa retrata a trajetória das duas famílias, Caroline se envolve com um solícito caminhoneiro conforme luta arduamente pelos direitos de Phoebe estudar em escolas de crianças normais, enquanto que David e Norah (donos de um tempo mais considerável de tela) testemunham seu casamento sofrer graves abalos, iniciados pelo alcoolismo dela –originado justamente do fato de não superar a falta desesperadora da filha –seguido da negligência de David tanto na questão matrimonial (na angústia de guardar consigo um segredo tão atroz, ele passa a isolar-se de Norah que, carente, passa a procurar o amor nos braços de outros homens), quanto parental (David não aceita, a medida que Paul vai crescendo, a aptidão dele para a música, exigindo que o filho siga a carreira médica como ele).

Por meio de uma câmera fotográfica que recebe de presente, e na qual descobre sua verdadeira paixão, David registra as fotos da história de sua família –esse é, pois, o “Guardião de Memórias” –e, aos poucos, descobre o paradeiro de Caroline e Phoebe, capturando em fotos, também o destino da própria filha.

Apaixonado por arquétipos e paradigmas cinematográficos, o diretor Mick Jackson persegue, em seus projetos, os elementos que enfatizam este ou aquele gênero, e os explora com um entusiasmo e uma paixão que, não obstante as falhas pontuais e eventuais de seu estilo, acabam contagiando o expectador. “O Guardião de Memórias” representa para ele uma oportunidade de emular Sirk, John Dahl, Frank Borzage, Edmund Goulding, King Vidor e outros diretores expressivos do melodrama. Como eles, Jackson enfatiza as emoções amargas –ainda que a direção de atores ocasionalmente se revele escorregadia –e inflama as situações dramáticas no enredo, focando em mazelas cotidianas –sendo aqui a circunstância adversa dos portadores de Síndrome de Down, ainda que tratada com superficialidade. O grande mérito de seu trabalho, para além do afago no público exclusivo dessa categoria, está no hábil afastamento em ceder ao óbvio, não transformando o personagem de David num mero vilão sem sentimentos, mas valendo-se das propriedades de sua premissa para justificar, contextualizar e (ao menos tentar) compreender as motivações de seus terríveis atos.

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