segunda-feira, 30 de maio de 2022

O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias


 O filme povoado de nostalgia e de referências  à história do Brasil no início da década de 1970 dirigido por Cao Hamburger foi escolhido pelo Ministério da Cultura, no lugar do fenomenal “Tropa de Elite”, para representar o país na disputa pelo Oscar de melhor Filme Estrangeiro em 2006.

Isso levou uma parcela do público brasileiro a adquirir um certo ranço por um filme que merecia muito a atenção que lhe foi dada. Evitando comparações com a grande obra de José Padilha –até porque são dois trabalhos completamente diferentes! –o filme de Cao Hamburger lembra curiosamente (até no título inclusive) “O Ano Em Que Papai Saiu Em Viagem de Negócios”, de Emir Kusturica. A premissa básica, por sinal, é muito parecida: Pelos olhos de uma criança, testemunhamos as transformações políticas, às vezes bem severas, experimentadas por seu país-natal em geral, e pelos personagens de seus pais em particular.

No caso, o que conta aqui é a inconteste sensibilidade de Cao Hamburger como diretor. Ele preenche a história do pequeno Mauro (Michel Joelsas, de “Que Horas Ela Volta?”) com uma percepção minimalista de cinema (a narrativa é particularmente introspectiva) evidenciando pequenos detalhes acerca do período em que tudo se passa (abarcando o ano de 1970, quando a Seleção Brasileira venceu a Copa do Mundo) num prodigioso trabalho de reconstituição.

Entretanto, o que chama a atenção o tempo todo e do qual o diretor jamais descuida é o ponto de vista subjetivo de seu pequeno protagonista –pelos olhos de uma criança, os percalços tortuosos da luta armada contra a ditadura (ideologia abraçada pelos pais) nunca ganham ares de panfletagem ou de alarmismo, simplesmente porque isso pouco significa para o inocente personagem principal. Para Mauro, o que importa é a aflição imediata experimentada quando seus pais (Eduardo Moreira e a bela Simone Spoladore), sob pretexto que estão ‘saindo de férias’ o largam na porta do prédio onde mora o avô (ponta do grande Paulo Autran) em pleno Bairro do Bom Retiro em São Paulo.

O timing não poderia ser pior: Poucas horas antes, o avô de Mauro havia falecido (!). Quase desamparado nos dias que se seguem, Mauro acaba sendo ‘adotado’ pelo vizinho de apartamento de seu avô, o judeu Shlomo (o magnífico Germano Haiut) –aliás, todos os moradores do prédio e das redondezas são descendentes de judeus. O que leva Mauro a ser mergulhado numa cultura até então completamente diferente e desconhecida.

Aqui e ali, a câmera perspicaz de Hamburger não deixa de capturar elementos pertinentes de seu tempo, indicativos dos rumos políticos do país –o caso mais contundente é o personagem de Caio Blat, um universitário militante que vez ou outra dá as caras –mas, ao diretor, esse aspecto não importa tanto. Tal e qual o fascismo em “Amarcord”, as ideologias políticas a estressar e a preocupar os adultos são vistas pelas crianças como uma manifestação cultural, quando muito. À Hamburger interessa de fato as impressões genuínas e nada dissimuladas de Mauro ao mundo que se descortina à sua volta, como as atribulações (muitas delas divertidas) da amizade com a garotinha Hanna (Daniela Piepszyk), o súbito florescer do desejo juvenil pela moça mais velha Irene (Liliana Castro), as amizades cheias de alianças e disputas entre os garotos da vizinhança e, sobretudo, a progressão cautelosa, vagarosa e cheia de desconfiança da relação quase paternal entre Mauro e o velho Shlomo que, como todo bom arco dramatúrgico, passa por humores variados de injúria e impaciência até emergir de tantos exasperos como um vínculo cheio de verdadeira ternura.

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