No frequentemente intraduzível cinema do diretor Peter Greenaway, o grotesco e o belo sempre estão em colisão –ou em vias de se complementar. Esse conceito se encontra quase que explícito neste seu segundo trabalho, lançado em 1985. Nele, dois irmãos gêmeos, Oliver e Oswald Deuce (Eric e Brian Deacon, gêmeos também na vida real) compartilham a mesma profissão –são zoólogos –e a mesma tragédia: Ambos perderam as esposas num insólito acidente de carro a envolver um cisne (?!). Desde então, Oliver e Oswald desenvolveram uma estranha obsessão por corpos em decomposição. A fim de saciar essa fixação, eles usam do equipamento do zoológico para filmar, inicialmente, maçãs em processo de apodrecimento, e mais tarde, corpos de animais mortos em putrefação, até por fim tentarem, a todo custo, filmar um cadáver humano em tal situação.
Mas, esta, porém, é só a superfície das pulsões
bizarras que Greenaway torna central em sua obra: Cada personagem do filme vive
e respira em torno de uma neurose que o define. Seja o soturno diretor do
zoológico, Hoyten (Joss Ackland, de “O Siciliano”), cujo aspecto sombrio de
Anjo da Morte já antecipa sua sinistra predisposição para ver outros seres
morrendo, humanos ou animais; seja a prostituta e contadora de histórias Vênus
de Milo (Frances Farber, de “Evilenko”), uma alma inquieta e caricata a orbitar
o microcosmos do zoológico; e seja, enfim, a mais pertinente dentre todos eles
para a trama, Alba Bewick (Andrea Ferreol, de “O Tambor”), sobrevivente do
mesmo acidente no qual os Deuce perderam as esposas –e no qual ela perdeu a
perna direita!
Fascinados por ela, os Deuce estabelecem com
Alba uma estranha sinergia que, como toca ao controvertido senso de humor ácido
de Greenaway, culmina em sexo.
Não há, no entanto, nada de socialmente
plausível nos relacionamentos esboçados neste ou em qualquer filme de Greenaway
–nada disso interessa a ele –há, sim, uma inquietação singular para com a fonte
de obsessão de seus personagens (o limiar da vida e da morte) e as consequências
existenciais que, por conta disso, os conduzem aos seus limites. Tendo
engravidado Alba –que, na ânsia por uma simetria perdida com a mutilação,
requisita uma cirurgia para remover a perna restante (!), o que lhe tira a
vontade de viver –os gêmeos veem negado seu pedido de ter um cadáver humano
para filmar nos mesmos moldes que fizeram com animais mortos o filme todo, e
decidem assim, numa espécie de pacto suicida, filmar a si próprios (!).
Peter Greenaway sempre contou que a realização
de “ZOO-Um Z e Dois Zeros” encapsulava três projetos de objetivos distintos: O
primeiro, um filme sobre a relação simbiótica, hipotética e vasta em
possibilidades entre dois gêmeos, duas duplicatas, em eterno convívio com o
fardo de viver e se relacionar num mundo individualizado (e, de fato, seus
protagonistas, a medida que o filme segue para o desfecho, retrocedem à
condição de siameses na qual nasceram e passam a dividir as mesmas roupas,
agindo e atuando numa espécie de sincronia gestual); o segundo, uma produção
exuberante na captura da vida campestre e selvagem (uma constante na
filmografia de Greenaway) em contraponto à inerente selvageria humana, o que
converte o mundo civilizado visto no filme em um reflexo do próprio zoológico
que predomina em cena (com os personagens humanos ostentando visíveis
patologias instintivas das quais mal se dão conta); e o terceiro, uma obra que
abordasse e enfatizasse a importância da luz –e, para tanto, a referência
suprema evoca o pintor holandês Johannes Vermeer (mencionado ao longo da trama
das mais diversas formas) e a dicotomia visual estabelecida entre seus quadros
(e sua inovadora percepção da luz) e os enquadramentos da câmera na refinada
direção de fotografia de Sacha Vierny.
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