segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

ZOO - Um Z e Dois Zeros


 No frequentemente intraduzível cinema do diretor Peter Greenaway, o grotesco e o belo sempre estão em colisão –ou em vias de se complementar. Esse conceito se encontra quase que explícito neste seu segundo trabalho, lançado em 1985. Nele, dois irmãos gêmeos, Oliver e Oswald Deuce (Eric e Brian Deacon, gêmeos também na vida real) compartilham a mesma profissão –são zoólogos –e a mesma tragédia: Ambos perderam as esposas num insólito acidente de carro a envolver um cisne (?!). Desde então, Oliver e Oswald desenvolveram uma estranha obsessão por corpos em decomposição. A fim de saciar essa fixação, eles usam do equipamento do zoológico para filmar, inicialmente, maçãs em processo de apodrecimento, e mais tarde, corpos de animais mortos em putrefação, até por fim tentarem, a todo custo, filmar um cadáver humano em tal situação.

Mas, esta, porém, é só a superfície das pulsões bizarras que Greenaway torna central em sua obra: Cada personagem do filme vive e respira em torno de uma neurose que o define. Seja o soturno diretor do zoológico, Hoyten (Joss Ackland, de “O Siciliano”), cujo aspecto sombrio de Anjo da Morte já antecipa sua sinistra predisposição para ver outros seres morrendo, humanos ou animais; seja a prostituta e contadora de histórias Vênus de Milo (Frances Farber, de “Evilenko”), uma alma inquieta e caricata a orbitar o microcosmos do zoológico; e seja, enfim, a mais pertinente dentre todos eles para a trama, Alba Bewick (Andrea Ferreol, de “O Tambor”), sobrevivente do mesmo acidente no qual os Deuce perderam as esposas –e no qual ela perdeu a perna direita!

Fascinados por ela, os Deuce estabelecem com Alba uma estranha sinergia que, como toca ao controvertido senso de humor ácido de Greenaway, culmina em sexo.

Não há, no entanto, nada de socialmente plausível nos relacionamentos esboçados neste ou em qualquer filme de Greenaway –nada disso interessa a ele –há, sim, uma inquietação singular para com a fonte de obsessão de seus personagens (o limiar da vida e da morte) e as consequências existenciais que, por conta disso, os conduzem aos seus limites. Tendo engravidado Alba –que, na ânsia por uma simetria perdida com a mutilação, requisita uma cirurgia para remover a perna restante (!), o que lhe tira a vontade de viver –os gêmeos veem negado seu pedido de ter um cadáver humano para filmar nos mesmos moldes que fizeram com animais mortos o filme todo, e decidem assim, numa espécie de pacto suicida, filmar a si próprios (!).

Peter Greenaway sempre contou que a realização de “ZOO-Um Z e Dois Zeros” encapsulava três projetos de objetivos distintos: O primeiro, um filme sobre a relação simbiótica, hipotética e vasta em possibilidades entre dois gêmeos, duas duplicatas, em eterno convívio com o fardo de viver e se relacionar num mundo individualizado (e, de fato, seus protagonistas, a medida que o filme segue para o desfecho, retrocedem à condição de siameses na qual nasceram e passam a dividir as mesmas roupas, agindo e atuando numa espécie de sincronia gestual); o segundo, uma produção exuberante na captura da vida campestre e selvagem (uma constante na filmografia de Greenaway) em contraponto à inerente selvageria humana, o que converte o mundo civilizado visto no filme em um reflexo do próprio zoológico que predomina em cena (com os personagens humanos ostentando visíveis patologias instintivas das quais mal se dão conta); e o terceiro, uma obra que abordasse e enfatizasse a importância da luz –e, para tanto, a referência suprema evoca o pintor holandês Johannes Vermeer (mencionado ao longo da trama das mais diversas formas) e a dicotomia visual estabelecida entre seus quadros (e sua inovadora percepção da luz) e os enquadramentos da câmera na refinada direção de fotografia de Sacha Vierny.

Inconformista, deliberadamente absurdo e orgulhoso de cada uma de suas bizarrices, este trabalho de Peter Greenaway, engajado para com o novo vocabulário cinematográfico que o Novo Cinema Britânico de então buscava levar ao mundo, inevitavelmente se mostra de difícil apreciação –expectadores em busca de escapismo, ou incapazes de aceitar a aura insana e até surreal a envolver o filme desde a sequência inicial do acidente devem abandoná-lo, caso contrário, irão se ressentir de sua amarga originalidade e de sua desconcertante junção entre fatalismo e decadência moral –trata-se, porém, de um trabalho notável e admirável de um autor indomado e destemido, completamente avesso ao emprego do cinema como fórmula comercial, e sim como um laboratório, onde a tela deve expor emoções e experiências concebidas com o ineditismo de uma imaginação sem freios.

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