Goste ou não, a obra de Michael Cimino pulsa
cinema do mais alto nível pelos poros. Percebe-se seu requinte mesmo em
trabalhos não tão aclamados como o caso de “O Siciliano”, que enseja uma
adaptação cinematográfica da biografia do lendário bandido Salvatore Giuliano,
escrita por Mario Puzo, mesmo autor de “O Poderoso Chefão” e, como na saga dos
Corleone, carregada de um romantismo para com os códigos de honra entre
mafiosos e um refinamento em relação à violência que deflagram.
Cimino encarou a realização de “O Siciliano”
sete anos depois de “O Portal do Paraíso” e dois anos depois de “O Ano do
Dragão”, seus projetos anteriores, e existem uma certa influência de ambos a
determinar a personalidade de sua direção aqui: Como no primeiro, Cimino concebe
tomadas sucessivas onde os personagens adentram recintos e ambientes em
sincronia com a câmera –numa espécie de ênfase existencial da transição de uma
fase para outra da história, e de seus personagens para os momentos divisores
de suas trajetórias. Como no segundo, Cimino abraça um gênero com som e fúria,
dando a ele as considerações de seu próprio estilo, ligeiramente constrangido
pelo escopo da superprodução que comanda (reflexos do trauma de “O Portal do
Paraíso”...), mas ainda assim, entregando belíssimas cenas.
O protagonista de “O Siciliano” é o então
desconhecido Christopher Lambert que Cimino pareceu ter selecionado a dedo para
o papel. Ele vive Salvatore Giuliano, camponês da cidade siciliana de
Montelepre, cujo maior inconformismo é a desigualdade de seu povo, com os ricos
usufruindo de fartura e os pobres perecendo na carência.
Numa tentativa de roubar trigo para os
camponeses poderem fazer pão, Giuliano, ao lado do fiel amigo Aspanu Pisciotta
(John Turturro) têm um violento embate a tiros com os policiais locais, do qual
Giuliano sai alvejado. Desenganado de que morreria devido ao ferimento,
Giuliano tem uma miraculosa recuperação –evento enxergado pelo roteiro como o
ponto de virada de sua trajetória –e passa a partir daí, a almejar muito mais
que apenas prover clandestinamente os necessitados: Libertando da cadeia os
foras-da-lei Passatempo (Andreas Katsulas, de “O Fugitivo”) e Terranova
(Derrick Branche), Giuliano passa a integrar, junto dos homens sob seu comando,
um bando refugiado nas montanhas da região que se dedica a roubar dos ricos
para dar aos pobres –ele tira-lhes o dinheiro para que comprem com ele seus
próprios lotes de terra.
Seu comportamento à la Robin Hood o torna
adorado em toda Sicília.
E também chama a atenção do poder de manobra
das massas de sua imagem para os influentes poderosos locais como o hedonista
Príncipe Borsa (Terence Stamp), a Duquesa Camila (Barbara Sukowa, de “Europa”),
com quem Giuliano tem um breve affair, e em especial, o mafioso Dom Masino
Croce (Joss Ackland, de “Máquina Mortífera 2”), um ameaçador misto de figura
paterna e de rival implacável.
Eles almejam trazer para si o apoio de Giuliano
contra os comunistas nas vindouras eleições, no entanto, Giuliano prefere se
manter apolítico, e dedicado à sua cruzada de prover terra para cultivo ao
povo, mesmo que por caminhos tortos e violentos. Pode desequilibrar a balança
de poder o seu envolvimento com Giovana (Giulia Boschi), irmã do mais prolífico
candidato de esquerda de Montelepre; e isso pode, por fim, levar os mafiosos
mais poderosos não apenas da Sicília, mas de toda a Itália –materializados na
figura de Trezza (Ray McAnally, de “A Missão”) –a armar uma verdadeira cilada
contra Giuliano, onde estará em jogo o descrédito dele junto ao povo siciliano
e a traição de um de seus mais leais arregimentados.
Nunca deixou de haver coragem no cinema
praticado por Michael Cimino. Aqui, ela aparece na audácia em conceber sua
visão pessoal desse lendário revolucionário tendo a memória tão recente da
obra-prima, “O Bandido Giuliano”, assinado por Francesco Rossi, entretanto, a
adaptação da obra de Mario Puzo subtraiu muitas de suas qualidades narrativas
em função da manutenção do esqueleto principal da trama. Quem não teve acesso
ao livro observa uma lamentável e predominante fragilidade nas motivações da
maioria dos personagens em meio aos acontecimentos na meia hora final.
Ainda assim, um Michael
Cimino menor está mais acima da média do que muita produção aclamada de hoje em
dia.
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