quarta-feira, 4 de março de 2020

O Siciliano

Goste ou não, a obra de Michael Cimino pulsa cinema do mais alto nível pelos poros. Percebe-se seu requinte mesmo em trabalhos não tão aclamados como o caso de “O Siciliano”, que enseja uma adaptação cinematográfica da biografia do lendário bandido Salvatore Giuliano, escrita por Mario Puzo, mesmo autor de “O Poderoso Chefão” e, como na saga dos Corleone, carregada de um romantismo para com os códigos de honra entre mafiosos e um refinamento em relação à violência que deflagram.
Cimino encarou a realização de “O Siciliano” sete anos depois de “O Portal do Paraíso” e dois anos depois de “O Ano do Dragão”, seus projetos anteriores, e existem uma certa influência de ambos a determinar a personalidade de sua direção aqui: Como no primeiro, Cimino concebe tomadas sucessivas onde os personagens adentram recintos e ambientes em sincronia com a câmera –numa espécie de ênfase existencial da transição de uma fase para outra da história, e de seus personagens para os momentos divisores de suas trajetórias. Como no segundo, Cimino abraça um gênero com som e fúria, dando a ele as considerações de seu próprio estilo, ligeiramente constrangido pelo escopo da superprodução que comanda (reflexos do trauma de “O Portal do Paraíso”...), mas ainda assim, entregando belíssimas cenas.
O protagonista de “O Siciliano” é o então desconhecido Christopher Lambert que Cimino pareceu ter selecionado a dedo para o papel. Ele vive Salvatore Giuliano, camponês da cidade siciliana de Montelepre, cujo maior inconformismo é a desigualdade de seu povo, com os ricos usufruindo de fartura e os pobres perecendo na carência.
Numa tentativa de roubar trigo para os camponeses poderem fazer pão, Giuliano, ao lado do fiel amigo Aspanu Pisciotta (John Turturro) têm um violento embate a tiros com os policiais locais, do qual Giuliano sai alvejado. Desenganado de que morreria devido ao ferimento, Giuliano tem uma miraculosa recuperação –evento enxergado pelo roteiro como o ponto de virada de sua trajetória –e passa a partir daí, a almejar muito mais que apenas prover clandestinamente os necessitados: Libertando da cadeia os foras-da-lei Passatempo (Andreas Katsulas, de “O Fugitivo”) e Terranova (Derrick Branche), Giuliano passa a integrar, junto dos homens sob seu comando, um bando refugiado nas montanhas da região que se dedica a roubar dos ricos para dar aos pobres –ele tira-lhes o dinheiro para que comprem com ele seus próprios lotes de terra.
Seu comportamento à la Robin Hood o torna adorado em toda Sicília.
E também chama a atenção do poder de manobra das massas de sua imagem para os influentes poderosos locais como o hedonista Príncipe Borsa (Terence Stamp), a Duquesa Camila (Barbara Sukowa, de “Europa”), com quem Giuliano tem um breve affair, e em especial, o mafioso Dom Masino Croce (Joss Ackland, de “Máquina Mortífera 2”), um ameaçador misto de figura paterna e de rival implacável.
Eles almejam trazer para si o apoio de Giuliano contra os comunistas nas vindouras eleições, no entanto, Giuliano prefere se manter apolítico, e dedicado à sua cruzada de prover terra para cultivo ao povo, mesmo que por caminhos tortos e violentos. Pode desequilibrar a balança de poder o seu envolvimento com Giovana (Giulia Boschi), irmã do mais prolífico candidato de esquerda de Montelepre; e isso pode, por fim, levar os mafiosos mais poderosos não apenas da Sicília, mas de toda a Itália –materializados na figura de Trezza (Ray McAnally, de “A Missão”) –a armar uma verdadeira cilada contra Giuliano, onde estará em jogo o descrédito dele junto ao povo siciliano e a traição de um de seus mais leais arregimentados.
Nunca deixou de haver coragem no cinema praticado por Michael Cimino. Aqui, ela aparece na audácia em conceber sua visão pessoal desse lendário revolucionário tendo a memória tão recente da obra-prima, “O Bandido Giuliano”, assinado por Francesco Rossi, entretanto, a adaptação da obra de Mario Puzo subtraiu muitas de suas qualidades narrativas em função da manutenção do esqueleto principal da trama. Quem não teve acesso ao livro observa uma lamentável e predominante fragilidade nas motivações da maioria dos personagens em meio aos acontecimentos na meia hora final.
Ainda assim, um Michael Cimino menor está mais acima da média do que muita produção aclamada de hoje em dia.

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