quinta-feira, 9 de março de 2023

A Baleia


 Os filmes de Darren Aronofsky são tratados cinematográficos sobre as consequências físicas das escolhas emocionais adotadas por seus personagens. Seu cinema é um sacrifício da sutileza em prol da visceralidade. Foi mirando esse norte que ele transformou “Pi” e “Réquiem Para Um Sonho” em obras de terror amparadas em expedientes nada fantasiosos, extraídos diretamente da vida real. A medida que ganhou mais idade e experiência, suas obras foram focando cada vez mais em seus personagens, cada vez mais nas particularidades que os definiam e que, ao mesmo tempo, os empurravam em direção ao abismo. Nesse sentido, há toda uma relação muito pessoal entre os protagonistas de “O Lutador”, Cisne Negro” e este “A Baleia”.

Aronofsky tem o atrevimento de escalar Brendan Fraser, outrora um galã de filmes comerciais, para o papel de Charlie, um homem de meia idade obeso, homossexual e deprimido. Charlie é um ser humano em vias de consumar seu tormento interior a partir da visão cada vez mais irreversível de sua deterioração exterior –e, ao interpretá-lo, Brendan Fraser traz para o papel o peso de alguém que experimentou e compreendeu a crueldade desse processo. Como o protagonista de “O Lutador”, descobrimos Charlie como uma ruína de si mesmo, e como ele, tudo o que parece lhe restar é a filha com a qual nunca mais teve contato. Como a bailarina de “Cisne Negro”, Charlie padece cada segundo por ser quem é, em suas fragilidades, em suas abissais limitações. O filme de Aronofsky não esconde sua origem teatral (a partir da peça de Samuel D. Hunter), na ambientação restrita exclusivamente ao apartamento do protagonista, mas ele também não se exime de ser cinema na consciência narrativa adotada pela câmera, nas minimalistas adaptações que ramificam o enredo através do desenvolvimento mais satisfatório de alguns de seus coadjuvantes –o altruísmo áspero e maternal da amiga Liz (a ótima Hong Chau, de “Pequena Grande Vida”); a aparição providencial do fervorosamente religioso Thomas (Ty Simpkins, de “Homem de Ferro 3”); o ressentimento incontido da filha Ellie (Sadie Sink, da série “Stranger Things”) –todos orbitam Charlie com as considerações no fim das contas redundantes  da relação que têm com ele. Liz é irmã do homem que Charlie amou, e pelo qual deixou a família oito anos atrás (e cujo suicídio o levou a uma depressão de tal maneira severa que o condenou ao corpo morbidamente obeso que o está consumindo). Thomas surge já na primeira cena como alguém enviado por Deus para ajudar Charlie (assim, pelo menos, é como ele próprio enxerga a circunstância), mas será Thomas quem, nas revelações subsequentes de sua real situação, será auxiliado à conclusão de seu destino. E Ellie reitera seu ódio pelo pai que a abandonou quando criança, embora esteja sempre por perto, ciscando o sentimento enervante que, no fim das contas, é um amor transfigurado.

Charlie, porém, está morrendo. Na verdade, ele tem cerca de uma semana de vida –e a narrativa se divide assim em episódios que levam o título dos dias da semana –e como todo o protagonista caprichosamente inserido nas profundezas de suas celeumas pessoais desde os tempos de Shakespeare, é seu esforço, a tatear uma vã redenção, que o levará a um desfecho talvez digno.

“A Baleia” do título não é, pois, somente uma alusão ao protagonista e sua condição física debilitada –embora certamente essa analogia esteja em pauta –mas, acima de tudo, uma referência à obsessão intransigente registrada por Melville em “Moby Dick”, obra muito mencionada na trama, inclusive porque o protagonista é um ex-professor universitário, exímio estudioso de literatura, lecionando um curso on-line para alunos que não podem vê-lo por meio de sua câmera desligada.

Como em cada uma das investigações dramáticas que capitaneou, não falta crueldade na postura inclemente que Aronofsky adota aqui. Ela surge nos indícios sádicos e detalhados do flagelo constante que a obesidade inflige em Charlie (concebidos com um formidável trabalho de maquiagem), e na observação mais íntima e indireta acerca da índole de Ellie (seria ela uma pessoa má ou não?) na forma de pistas que Charlie busca não admitir. Mas, Aronofsky termina também atingindo os pontos certos –muitos deles graças à entrega habilidosa e sem restrição de Brendan Fraser ao papel –e consegue, por fim, emocionar o expectador que consiga atravessar desenvolto um trabalho de dramaturgia tão dilacerante.

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