sexta-feira, 10 de março de 2023

Os Banshees de Inisherin


 Certo dia, o simplório Padraic (o competente Colin Farrell), morador da ilha de Inisherin, na costa oeste irlandesa, vai à casa de seu melhor amigo Colm (Brendan Gleeson), a fim de convidá-lo para a habitual rodada de bebidas no bar local. Mas, por alguma razão, tudo está diferente. Colm não quer mais ser seu amigo, nem nunca mais falar com ele. Para Padraic, a perda dessa amizade –e ainda por razões que seu intelecto não consegue entender –será uma questão insuportável. É dessa circunstância curiosa e brilhantemente calcada em notáveis personagens que se abastece a narrativa de “Os Banshees de Inisherin”, realização que o audaz Martin McDonagh sucede ao seu premiado “Três Anúncios Para Um Crime”.

Diretor, roteirista e produtor de suas obras –o que lhe garante total autonomia e liberdade criativa para com seu resultado final –McDonagh é um autor atento às peculiaridades insondáveis de seu personagens e, em cada filme, encontra uma chance para lapidar ainda mais um talento nato para sublinhar as diversas dualidades humanas. Aqui, ele tem dois ótimos protagonistas –Padraic e Colm, aliás, interpretados pela mesma dupla que estrelou o primeiro longa-metragem de McDonagh, “Na Mira do Chefe” –e outros tantos excelentes coadjuvantes, como Siobhan (a sensacional Kerry Condon, de “A Última Estação”), irmã de Padraic, e das poucas pessoas letradas e sensatas da rude Inisherin; ou Dominic (Barry Keoghan, de “O Sacrifício do Cervo Sagrado”), jovem com uns parafusos a menos, filho de um pai abusivo e truculento. Esses e outros personagens, todos moradores da reclusa comunidade de Inisherin –tão enclausurada em si mesma que os vestígios da guerra que se sucede no continente resumem-se à explosões e tiros banais percebidos com certa indiferença ao longe –giram em torno da amizade entre os dois protagonistas que chega ao fim.

Para Padraic, cuja vida seguia numa marcha à qual ele não almejava promover mudanças, a atitude de Colm é uma reviravolta que ele não compreende –e tão mais incompreensível lhe é, que sua busca por motivações, nos dias que se seguem, acirra ainda mais o abismo que os separa. Já, para Colm, a amizade com Padraic era um empecilho para suas reais aptidões: Numa certa idade, ele se dá conta que as vicissitudes de casa até o bar que satisfaziam o amigo não têm o mesmo efeito sobre ele. Colm quer, nessa altura da vida, deixar um legado na forma de música, e para tanto, ele toma a decisão radical de remover a distração –ou seja, Padraic –de seu dia-a-dia.

Tão radical é essa decisão e a determinação para mantê-la, que Colm promete: Toda a vez que Padraic contrariar suas bem declaradas disposições para ficarem longe um do outro, Colm haverá de mutilar um dedo da própria, até não lhe restar nenhum (!).

Habilidoso na avaliação dramatúrgica dessa premissa, o filme de Martin McDonagh revela-se prodigioso ao abordar essa questão um tanto escorregadia sem obviedades; no roteiro cheio de equilíbrio e inspiração (sempre um ponto muito forte nos trabalhos de McDonagh), no elenco magistral e homogêneo que reúne, e na junção absolutamente sublime de gêneros que realiza –do humor reticente, agridoce e peculiar ao drama incisivo e minimalista –“Os Banshees de Inisherin” é uma fábula sobre a mutação imprevista dos sentimentos nas dinâmicas mais inusitadas, e a interessante reação de terceiros a essa circunstância (algo que pode ser visto como o cerne de toda obra de McDonagh). Um trabalho de insuspeita astúcia e irrestrita propriedade, inclusive, um passo cada vez mais longe da caricatura com a qual McDonagh já foi acusado de executar suas construções dramáticas.

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