sexta-feira, 15 de março de 2024

Zona de Interesse


 A crítica especializada costuma apontar o fato de que filmes de guerra, de um modo geral, cometem um contrassenso: Utiliza-se a guerra para denunciar seus horrores ao mesmo tempo em que, apelando à pirotecnia e a um certo sadismo do público, vale-se das atrocidades como um chamariz comercial, sobretudo, na sempre aproveitada oportunidade para transformar as cenas de combate em cenas de ação.

Dirigido pelo britânico Jonathan Glazer (e, no entanto, falado todo em alemão), o magnífico “Zona de Interesse” escapa magistralmente dessa contradição: Não há um único fotograma em toda essa obra que caia na armadilha de romantizar a Segunda Guerra Mundial ao mesmo tempo que a repudia. Isso porque, no distanciamento a la Stanley Kubrick que propõe a narrativa, “Zona de Interesse” não é exatamente um filme de guerra –uma vez que as sequências de combate inexistem –e nem mesmo é, necessariamente, um filme sobre o Holocausto; ao menos, não para olhos e ouvidos um pouco mais distraídos.

Deduzimos que aquilo que vemos seja na Alemanha (afinal, todos falam alemão!), e deduzimos que aquilo se passa em meados dos anos 1940 –ao menos, é o que sugerem as roupas, os penteados, a ambientação e o comportamento dos personagens. E assim, de dedução em dedução, como expectadores submetidos a uma espécie de desafio implícito, vamos montando o contexto a medida que o filme avança: Uma família; a mãe (Sandra Hüller, a mesma de “Anatomia de Uma Queda”), o pai e os dois filhos jovens, vivem numa mansão de classe alta, sempre auxiliados por vários serviçais que, vez ou outra, ostentam flagrante apreensão.

Logo, não tardamos a notar a farda de trabalho que o pai usa (um figurino que remete imediatamente aos oficiais nazistas) dentro da qual inúmeros outros colegas dele, num ou noutro momento, aparecem também. Contrariando, porém, a concentração nos quesitos visuais da maioria esmagadora das obras do cinema recente, é no som, contudo, que “Zona de Interesse” reserva suas pistas mais cruciais: ignorados pelos protagonistas, ora com fácil indiferença, ora com mais forçada dissimulação, sons inusitados chegam aos nossos ouvidos. Sons de gritos, uns de ordem intolerante, outros (a maior parte) de desespero diante da morte iminente; com efeito, também podemos ouvir, aqui e ali, sons de tiros, muitas vezes, pondo fim a alguns desses murmúrios. Também os planos abertos, de simplicidade enganosa a lembrar uma realização de Michael Haneke, acabam mostrando ao fundo a fumaça de uma gigantesca chaminé, onde é possível presumir, centenas são sacrificados todos os dias.

Podemos supor –pois em nenhum momento, a narrativa desafiadora de Glazer irá nos confirmar – que a mansão dessa família se localiza num campo de concentração (e não num campo qualquer, mas o próprio campo de Auschwitz!) e seu patriarca (interpretado por Christian Friedel, de –veja só! –“A Fita Branca”, de Haneke) é o oficial comandante do lugar.

Em algum momento, com essa condução desigual e certamente originalíssima, o filme do diretor Glazer nos leva a tecer algumas reflexões: Que, não obstante a demonização feita por infindáveis histórias da Segunda Guerra Mundial, os alemães eram pessoas normais, com famílias normais e comportamentos normais. E assim são aqui retratados.

É na forma com que foram capazes de seguir com uma vida absolutamente doméstica e convencional, mesmo ao lado de um genocídio se sucedendo dia após dia, que enxergamos uma monstruosidade que nunca aparece de fato –ela, quando muito, se manifesta brevemente, na perceptível incapacidade da dona da casa em enxergar seus criados como seres humanos de fato nos momentos de maior irritação, quando ela lhes lembra que, o simples fato de estarem vivos, é algo pelo qual lhes devem gratidão eterna.

O Mal, o filme de Jonathan Glazer procura deixar claro, nunca se aparece, de fato, com o Mal. Ele surge em atos que, em princípio, parecem desvinculados da rotina, em detalhes que correm o risco de parecerem banais diante do todo.

É por isso que, em “Zona de Interesse” tal e qual seu trabalho anterior, o também primordial “Sob A Pele”, são os planos que contam a história. Sem expor nada. Sem impor nada. Apenas ilustrando uma realidade terrivelmente cruel.

A progressão dessa narrativa a um só tempo idílica e aterradora logo vai gerando um desconforto no expectador, como provavelmente  nenhum filme do cinema recente foi capaz de suscitar.

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