A crítica especializada costuma apontar o fato de que filmes de guerra, de um modo geral, cometem um contrassenso: Utiliza-se a guerra para denunciar seus horrores ao mesmo tempo em que, apelando à pirotecnia e a um certo sadismo do público, vale-se das atrocidades como um chamariz comercial, sobretudo, na sempre aproveitada oportunidade para transformar as cenas de combate em cenas de ação.
Dirigido pelo britânico Jonathan Glazer (e, no
entanto, falado todo em alemão), o magnífico “Zona de Interesse” escapa
magistralmente dessa contradição: Não há um único fotograma em toda essa obra
que caia na armadilha de romantizar a Segunda Guerra Mundial ao mesmo tempo que
a repudia. Isso porque, no distanciamento a
la Stanley Kubrick que propõe a narrativa, “Zona de Interesse” não é
exatamente um filme de guerra –uma vez que as sequências de combate inexistem
–e nem mesmo é, necessariamente, um filme sobre o Holocausto; ao menos, não
para olhos e ouvidos um pouco mais distraídos.
Deduzimos que aquilo que vemos seja na Alemanha
(afinal, todos falam alemão!), e deduzimos que aquilo se passa em meados dos
anos 1940 –ao menos, é o que sugerem as roupas, os penteados, a ambientação e o
comportamento dos personagens. E assim, de dedução em dedução, como expectadores
submetidos a uma espécie de desafio implícito, vamos montando o contexto a
medida que o filme avança: Uma família; a mãe (Sandra Hüller, a mesma de
“Anatomia de Uma Queda”), o pai e os dois filhos jovens, vivem numa mansão de
classe alta, sempre auxiliados por vários serviçais que, vez ou outra, ostentam
flagrante apreensão.
Logo, não tardamos a notar a farda de trabalho
que o pai usa (um figurino que remete imediatamente aos oficiais nazistas)
dentro da qual inúmeros outros colegas dele, num ou noutro momento, aparecem
também. Contrariando, porém, a concentração nos quesitos visuais da maioria
esmagadora das obras do cinema recente, é no som, contudo, que “Zona de
Interesse” reserva suas pistas mais cruciais: ignorados pelos protagonistas,
ora com fácil indiferença, ora com mais forçada dissimulação, sons inusitados
chegam aos nossos ouvidos. Sons de gritos, uns de ordem intolerante, outros (a
maior parte) de desespero diante da morte iminente; com efeito, também podemos
ouvir, aqui e ali, sons de tiros, muitas vezes, pondo fim a alguns desses
murmúrios. Também os planos abertos, de simplicidade enganosa a lembrar uma
realização de Michael Haneke, acabam mostrando ao fundo a fumaça de uma
gigantesca chaminé, onde é possível presumir, centenas são sacrificados todos
os dias.
Podemos supor –pois em nenhum momento, a narrativa
desafiadora de Glazer irá nos confirmar – que a mansão dessa família se
localiza num campo de concentração (e não num campo qualquer, mas o próprio
campo de Auschwitz!) e seu patriarca (interpretado por Christian Friedel, de
–veja só! –“A Fita Branca”, de Haneke) é o oficial comandante do lugar.
Em algum momento, com essa condução desigual e
certamente originalíssima, o filme do diretor Glazer nos leva a tecer algumas
reflexões: Que, não obstante a demonização feita por infindáveis histórias da
Segunda Guerra Mundial, os alemães eram pessoas normais, com famílias normais e
comportamentos normais. E assim são aqui retratados.
É na forma com que foram capazes de seguir com
uma vida absolutamente doméstica e convencional, mesmo ao lado de um genocídio
se sucedendo dia após dia, que enxergamos uma monstruosidade que nunca aparece
de fato –ela, quando muito, se manifesta brevemente, na perceptível
incapacidade da dona da casa em enxergar seus criados como seres humanos de
fato nos momentos de maior irritação, quando ela lhes lembra que, o simples
fato de estarem vivos, é algo pelo qual lhes devem gratidão eterna.
O Mal, o filme de Jonathan Glazer procura
deixar claro, nunca se aparece, de fato, com o Mal. Ele surge em atos que, em
princípio, parecem desvinculados da rotina, em detalhes que correm o risco de
parecerem banais diante do todo.
É por isso que, em “Zona de Interesse” tal e
qual seu trabalho anterior, o também primordial “Sob A Pele”, são os planos que
contam a história. Sem expor nada. Sem impor nada. Apenas ilustrando uma
realidade terrivelmente cruel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário