quarta-feira, 20 de março de 2024

Donzela


 Certamente, uma das maiores estrelas da nova geração de atrizes de Hollywood, a jovem Milly Bobby Brown praticamente cresceu em frente às câmeras desde sua auspiciosa revelação como a personagem Eleven na série da Netflix “Stranger Things”. De lá pra cá, além das quatro temporadas da série, ela fez, entre outros trabalhos, o infanto-juvenil “Enola Holmes” e sua continuação, também eles, produções da Netflix. Agora, ela torna a reaparecer numa produção da Netflix, este “Donzela” –ou, no original, “Damzel” –que procura claramente se afastar do tom infantil de seus trabalhos anteriores mirando num público mais adulto e amplo. Vale lembrar que, além de protagonista, Milly Bobby Brown atua também como produtora.

“Damzel” é dirigido pelo espanhol Juan Carlos Fresnadillo (de “Intacto” e “Extermínio 2”), mas, sequer há necessidade para que o expectador procure maiores similaridades de estilo: A direção de Fresnadillo é tão apagada, tão submetida a decisões de comitês que poderia bem ser qualquer um sentado na cadeira de direção; nenhuma personalidade autoral aparece nos cento e dez minutos de filme.

Não significa que não hajam intenções bastante pontuais a orientar o projeto –como fica perfeitamente claro, “Damzel” é uma releitura da fórmula ancestral dos contos de fantasia onde uma donzela em perigo é invariavelmente salva de um dragão por um príncipe galante. No roteiro de “Damzel” (escrito por Dan Mazeau) todas essas figuras arquetípicas (a donzela, o dragão e o príncipe, além de outras que vão aparecendo) são colocadas em questão. A começar, obviamente, pela donzela: Jovem plebéia, ainda que de uma família suficientemente abastada de seu vilarejo, a destemida Elodie (a própria Milly Bobby Brown) já deixa evidente, na primeira cena, que não planeja acomodar-se no papel de mocinha em perigo. Não que sua trama deixe de conduzi-la por tais caminhos. Incluída por seu pai (Ray Winstone, de “Noé”, “A Lenda de Beowulf” e “A Proposta”) num casamento arranjado, Elodie vai com a família –ela, seu pai, sua madrasta (Angela Basset) que, olhe só, não é malvada (!) e sua irmã mais nova (Brooke Carter) –rumo ao reino que lhe comprou o dote, livrando com isso todo o seu vilarejo da fome.

Inicialmente, tudo parece correr como o esperado. A Família Real é altiva e melindrosa, mas minimamente acolhedora, a rainha (Robin Wright) tem a dubiedade dos aristocratas; e o príncipe (Nick Robinson, de “Jurassic World”), a futilidade dos rapazes mimados da realeza. Ainda assim, Elodie é recebida bem, isso pelo menos, até o casamento se consumar. A partir daí, a verdade em torno da tradição casamenteira da Família Real é revelada: De tempos em tempos, com periodicidade alarmante, o rei e a rainha negociam a mão de uma jovem donzela de algum vilarejo pobre e, após realizar um ritual dentro da caverna (a mão da garota é cortada para que seu sangue se misture com o do príncipe), ela então é jogada lá dentro a fim de saciar o dragão que lá vive.

Elodie não foi a primeira (as ossadas e até mesmo indícios deixados pelas vítimas anteriores do labirinto de cavernas denunciam isso) e pode também não ser a última (pois, caso não baste para saciar a fome do dragão, a próxima pode vir a ser sua irmã!).

Assim, no enredo elaborado com certa descontração pela narrativa, não há ninguém para salvar Elodie do perigo, a não ser ela própria e sua capacidade de perseverança e resiliência. E esses estão longe de ser os únicos elementos em pauta nos dias atuais que aparecem empregados com imensa insistência no desenrolar do filme.

Há certamente a mensagem de empoderamento feminino a definir a trajetória da personagem principal de ponta a ponta (e com isso, perde qualquer elemento de galanteio ou de heroísmo os personagens do príncipe, este submisso à mãe, e do pai, um homem amargo, indeciso e relutante), além da questão da sororidade (a confiança e a cooperação entre mulheres) levando a personagem da madrasta, normalmente associada ao papel de vilã, a ganhar um retrato simpático e amoroso, e até mesmo o próprio dragão (que é fêmea!) a adquirir uma nova roupagem trágica, onde é pivô de um plano cruel –o dragão, por sinal, é dublado pela atriz Shohreh Aghdashloo, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “A Casa de Areia e Névoa”.

Violento e sombrio para os padrões de muitas produções da Netflix (sobretudo, aquelas estreladas por Milly Bobby Brown), “Donzela” é uma realização que, sem atingir notas muito hiperlativas, consegue satisfazer algumas expectativas ao seu respeito: A Netflix está certamente satisfeita pelo bom desempenho que o filme obteve de audiência desde sua estréia; a atriz Milly Bobby Brown conseguiu com isso provar que pode levar uma produção nas costas e ainda foi capaz de desvencilhar-se do gênero mais pueril que ameaçava engessar sua carreira; e o público tem uma obra relativamente apetecível para conferir (em especial, os fãs de Milly) com todo o engajamento feminista de muitos trabalhos atuais.

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