terça-feira, 16 de julho de 2024

O Estranho Que Nós Amamos


 Na década de 1970, a carreira do astro Clint Eastwood sinalizava um caminho óbvio: Depois de vários faroestes de sucesso (muitos deles comandados pelo mestre Sergio Leone) e filmes policiais truculentos, a estrela de Eastwood construía uma imagem de homem durão, protetor, de poucas palavras e inabalável. Embora tenha sido uma tentativa um bocado vã (o filme fracassou retumbantemente nas bilheterias da época), este “O Estranho Que Nós Amamos”, de 1971, representou um esforço de Eastwood em tentar subverter essa imagem, abraçando um papel cujas características ressaltavam inúmeras alegorias relativas ao poder castrador da mulher e exigiam um intérprete não só capacitado dramaticamente como também disposto a submeter-se  ao escrutínio que a própria trama cruel lhe impunha.

A Guerra Civil Norte-Americana segue acontecendo quando um soldado do Norte, em pleno Sul é encontrado por uma garota nas proximidades da escola onde todas vivem, no Mississipi. Tal escola, exclusiva para meninas, é administrada por Miss Martha (a ótima Geraldine Page, de “Caminhos Ásperos” e ganhadora do Oscar 1986 de Melhor Atriz por “O Regresso Para Bountiful”), e a chegada desse soldado quase moribundo, McBurney (o próprio Eastwood), deixa todas em polvorosa. Porque McBurney é homem. E porque todas (desde as alunas, passando pela professora, até chegar à diretora) se veem afetadas pela masculinidade finalmente próxima de um homem, após tanto tempo sozinhas naquela espécie de retiro. E assim, sob pretextos mal articulados (ele morreria na cadeia devido aos ferimentos, por exemplo), elas evitam de entregá-lo às autoridades sulistas e deixam que por lá se recupere.

Na primeira parte de sua obra, o diretor Don Siegel esmiuça um conto de desejo e anseios primitivos, ao mostrar, sem muita preocupação com sutilezas, os impulsos sexuais que contaminam aos poucos cada uma das mulheres: A pequena Amy (Pamelyn Ferdin) que recebe, ainda na floresta o primeiro beijo de McBurney (numa cena muito polêmica para a época); a diabólica e insinuante Carol (Jo Ann Harris) visivelmente arrebatada de desejo pelo soldado; a virginal Prof. Edwina (Elizabeth Hartman) cuja perplexidade para com o sexo oposto esconde profundezas de perigo e de fúria explosiva em potencial; a escrava Hallie (Mae Mercer, de “Pretty Baby-Menina Bonita”) dividida entre a suspeita inevitável pelos brancos e uma atração física quase instintiva; e Miss Martha, cuja presença de McBurney evoca, gradualmente, a satisfação carnal que ela, no passado, pode ter experimentado com o próprio irmão (!).

Há uma atmosfera de sonho que o diretor de fotografia Bruce Sturgees converte num apanhado bastante interessante de reproduções pictórias, a evocar quadros expressionistas e uma impressão celestial –este é pois, num primeiro momento, um paraíso: O homem ferido que, do nada, se vê cercado de mulheres, todas interessadas e apaixonadas por ele.

Numa manobra gradual, cheia de perversões e intenções macabras, Don Siegel converte esse paraíso num inferno: Levado pelos desejos dessas mulheres, todos eles carregados de expectativas muito particulares a serem atendidas, McBurney termina na cama da endiabrada Carol, alvo do ressentimento impiedoso de Edwina e, ao ser arremessado das escadarias por esta (!!), uma cobaia nas mãos do rancor implacável de Miss Martha que, sob a justificativa da nova fratura que ele agora tem na perna ser intratável, termina por amputá-la (!!!).

A partir daí, o filme de Don Siegel se torna uma obra expressionista de fato, com opções narrativas audazes, e um clima sombrio de tensão absurdista cada vez mais crescente. As personagens todas se transmutam ao sabor do contexto e McBurney, tão galante e cavalheiresco, se torna arredio, vingativo, ressentido e ameaçador. Características que Miss Martha e as outras jovens preferem ressaltar do que reconsiderar –logo, irão por em prática um plano terrível, do qual elas mesmas se convencem ser a única alternativa que McBurney lhes deixou; na realidade, talvez, até não seja, mas essa é uma das inúmeras reflexões que este hábil conto de deterioração moral e suplício físico resguarda ao expectador.

Em 2017, “O Estranho Que Nós Amamos” ganhou uma refilmagem pelas mãos de Sofia Coppola, que adulterou, com seu estilo lírico e romanceado, alguns elementos embutidos na premissa –lá, as motivações, sobretudo, das mulheres, não surgem com a mesma ambivalência moral com a qual é tratado o personagem masculino, levando o filme a soar como um tratado feminista de sobrevivência de uma translúcida comunidade de mulheres diante da manipulação de um invasor externo. Não aqui: Amparado nas diretrizes da Nova Hollywood de então –onde eram aceitas ousadias de ordem autoral na busca por histórias contadas com ineditismo e audácia –Don Siegel elaborou uma pequena e inquietante história sobre crueldades subjetivas a brotar no coração dos homens e das mulheres nas circunstâncias em que o desejo cega a razão.

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