Na década de 1970, a carreira do astro Clint Eastwood sinalizava um caminho óbvio: Depois de vários faroestes de sucesso (muitos deles comandados pelo mestre Sergio Leone) e filmes policiais truculentos, a estrela de Eastwood construía uma imagem de homem durão, protetor, de poucas palavras e inabalável. Embora tenha sido uma tentativa um bocado vã (o filme fracassou retumbantemente nas bilheterias da época), este “O Estranho Que Nós Amamos”, de 1971, representou um esforço de Eastwood em tentar subverter essa imagem, abraçando um papel cujas características ressaltavam inúmeras alegorias relativas ao poder castrador da mulher e exigiam um intérprete não só capacitado dramaticamente como também disposto a submeter-se ao escrutínio que a própria trama cruel lhe impunha.
A Guerra Civil Norte-Americana segue
acontecendo quando um soldado do Norte, em pleno Sul é encontrado por uma
garota nas proximidades da escola onde todas vivem, no Mississipi. Tal escola,
exclusiva para meninas, é administrada por Miss Martha (a ótima Geraldine Page,
de “Caminhos Ásperos” e ganhadora do Oscar 1986 de Melhor Atriz por “O Regresso
Para Bountiful”), e a chegada desse soldado quase moribundo, McBurney (o
próprio Eastwood), deixa todas em polvorosa. Porque McBurney é homem. E porque
todas (desde as alunas, passando pela professora, até chegar à diretora) se
veem afetadas pela masculinidade finalmente próxima de um homem, após tanto
tempo sozinhas naquela espécie de retiro. E assim, sob pretextos mal articulados
(ele morreria na cadeia devido aos ferimentos, por exemplo), elas evitam de
entregá-lo às autoridades sulistas e deixam que por lá se recupere.
Na primeira parte de sua obra, o diretor Don
Siegel esmiuça um conto de desejo e anseios primitivos, ao mostrar, sem muita
preocupação com sutilezas, os impulsos sexuais que contaminam aos poucos cada
uma das mulheres: A pequena Amy (Pamelyn Ferdin) que recebe, ainda na floresta
o primeiro beijo de McBurney (numa cena muito polêmica para a época); a
diabólica e insinuante Carol (Jo Ann Harris) visivelmente arrebatada de desejo
pelo soldado; a virginal Prof. Edwina (Elizabeth Hartman) cuja perplexidade
para com o sexo oposto esconde profundezas de perigo e de fúria explosiva em
potencial; a escrava Hallie (Mae Mercer, de “Pretty Baby-Menina Bonita”)
dividida entre a suspeita inevitável pelos brancos e uma atração física quase
instintiva; e Miss Martha, cuja presença de McBurney evoca, gradualmente, a
satisfação carnal que ela, no passado, pode ter experimentado com o próprio
irmão (!).
Há uma atmosfera de sonho que o diretor de
fotografia Bruce Sturgees converte num apanhado bastante interessante de
reproduções pictórias, a evocar quadros expressionistas e uma impressão
celestial –este é pois, num primeiro momento, um paraíso: O homem ferido que,
do nada, se vê cercado de mulheres, todas interessadas e apaixonadas por ele.
Numa manobra gradual, cheia de perversões e
intenções macabras, Don Siegel converte esse paraíso num inferno: Levado pelos
desejos dessas mulheres, todos eles carregados de expectativas muito
particulares a serem atendidas, McBurney termina na cama da endiabrada Carol,
alvo do ressentimento impiedoso de Edwina e, ao ser arremessado das escadarias
por esta (!!), uma cobaia nas mãos do rancor implacável de Miss Martha que, sob
a justificativa da nova fratura que ele agora tem na perna ser intratável,
termina por amputá-la (!!!).
A partir daí, o filme de Don Siegel se torna
uma obra expressionista de fato, com opções narrativas audazes, e um clima sombrio
de tensão absurdista cada vez mais crescente. As personagens todas se
transmutam ao sabor do contexto e McBurney, tão galante e cavalheiresco, se
torna arredio, vingativo, ressentido e ameaçador. Características que Miss
Martha e as outras jovens preferem ressaltar do que reconsiderar –logo, irão
por em prática um plano terrível, do qual elas mesmas se convencem ser a única
alternativa que McBurney lhes deixou; na realidade, talvez, até não seja, mas
essa é uma das inúmeras reflexões que este hábil conto de deterioração moral e
suplício físico resguarda ao expectador.
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