sexta-feira, 19 de julho de 2024

História Real


 Quando surgem os primeiros créditos na tela, emoldurados num céu estrelado, as informações ali contidas, pode-se presumir, eram inesperadas: Uma produção dos Estúdios Disney; Um filme de David Lynch (!). Os cinéfilos do mundo todo, até então, jamais conceberiam uma união entre o mago dos sonhos (e pesadelos), David Lynch, com a empresa família do camundongo Mickey –no entanto, aí está.

Como era de supor, entretanto, “História Real” é, de fato, uma presença ligeiramente destoante na filmografia de David Lynch, abraçando uma trama simples, linear e identificável de ponta a ponta. A sua direção, sempre habilmente climática, e sempre atenta às nuances nada óbvias da narrativa, nos leva para uma idílica cidadezinha interiorana de Iowa –uma ambientação até comum nas obras de Lynch –onde seu inesperado protagonista nos é apresentado. Alvin Straight (o expressivo Richard Farnsworth) é um idoso de 73 anos e, já de cara, somos tornados cientes de sua fragilidade. Seus quadris não estão bem (ele cai na cozinha e sem ajuda é incapaz de levantar), sua visão, obviamente, já não é a mesma, afetada pela diabetes e sua filha Rose (Sissy Spacek), apesar das limitações intelectuais, precisa monitorá-lo todo o tempo. Contudo, Alvin sabe que tem uma última incumbência a cumprir: Seu irmão Lyle (Harry Dean Stanton, aparecendo somente na emocionante cena final), com quem não fala há dez anos, sofreu um derrame. E a possibilidade de perdê-lo leva Alvin a rever a rusga que os afastou durante uma década, decidindo por ir ao encontro dele.

Só há um pequeno problema: Lyle mora em Wisconsin, a 390 km de distância, e tudo que Alvin dispõe como meio de transporte para chegar lá é o único maquinário que pode operar, um pequeno cortador de grama. Ainda assim, ele decide empreender essa jornada, sem contar com outros recursos, ou auxílios (que até aparecem num ou noutro momento, e sempre são recusados) mais ou menos como uma forma de fazer desse trajeto uma espécie de penitência ao fim da qual Alvin talvez possa perdoar o irmão e a si mesmo.

A história de Alvin Straight realmente ocorreu –como aponta, aliás, o título nacional –em meados de 1994, virando um artigo publicado no The New York Times naquele mesmo ano e, mais tarde, despertando profundo interesse na produtora Mary Sweeney que se encarregou de escrever o roteiro (junto de John Roach) e apresentá-lo à David Lynch. Por sua composição comovente, o veterano Richard Fransworth foi indicado ao Oscar 2000 de Melhor Ator, perdendo a estatueta para Kevin Spacey, por “Beleza Americana”,

Na filmografia de David Lynch, não resta qualquer dúvida, que “História Real” é um corpo atípico, longe de seus delírios fragmentados e surreais. Contudo, ele dialoga em alguns momentos com pelo menos outras duas obras do mestre Lynch: Com “Coração Selvagem” na cena (carregada de algum simbolismo) em que Alvin testemunha o atropelamento de um cervo (o comportamento esquizofrênico da motorista remete aos personagens mais usuais de Lynch); e com “Veludo Azul”, na primeira parte, que precede a viagem de Alvin, onde são capturados breves instantes da vida numa comunidade normal (banal até) norte-americana –é David Lynch ressaltando, em pequenos aspectos minimalistas, as desconfianças, suspeitas e intrigas a brotar na índole de gente comum.

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