A vida de Cristo, na visão impregnada de
auto-analítica circunspeção católica de Martin Scorsese não poderia render um
trabalho convencional. Quem tiver condições de lembrar sabe a gritaria que foi
no início dos anos 1990 quando Scorsese adaptou a controversa obra do grego
Nikos Kazantzákis, e com esse material fez um filme nunca menos do que memorável.
Ele inicia sua árdua narrativa acompanhando os
dilemas corrosivos experimentados por Jesus Cristo (Willen Dafoe, sensacional),
um modesto carpinteiro de Nazaré, assolado por toda a sorte de crises
existenciais ao receber indícios celestiais de uma procedência divina.
Apaixonado por uma prostituta, Maria Madalena (Bárbara
Hershey, também ela magnífica) ele compreende pouco a pouco que deve se desvencilhar
das aspirações mundanas e mesquinhas para almejar a divindade, não sem
submeter-se às angústias e questionamentos pessoais, inevitáveis dessa condição.
Ao se proclamar o Filho de Deus enviado à Terra
para redimir os pecados da Humanidade, ele choca os doutores da lei e inicia
uma trajetória pontuada por dor, humanismo, fé e aflição. Ele se torna ainda
mais perigoso por atrair com suas pregações os párias e deserdados da Judéia,
então colônia romana.
Os doutores da lei mosaica decidem então se
livrar dele, com a cumplicidade de um de seus discípulos, Judas Iscariotes
(vivido com fúria e solidez por Harvey Keitel).
Julgado e condenado por um beligerante Poncio Pilatos (uma participação pouco usual e cheia de requinte de David Bowie), Jesus é então crucificado, e ao vislumbrar,
ainda na cruz, uma outra vida onde sobreviveu e teve filhos, ele dá assim início
ao grande trecho do filme (que responde por seu terceiro e magnífico terço) do
qual é originária toda a sua polêmica: Os anseios de Cristo são assim
potencializados em toda uma grande sequência onde ele se imagina um homem
normal, casado com Maria Madalena, pai de filhos, e até onde for possível,
indiferente ao mito do Messias que tentou difundir.
A poderosa visão de Scorsese não esconde as
impressões a respeito desse vislumbre –todo este segmento do filme acumula os
mais belos e acalentadores momentos da obra, em contraponto à feiúra, à
sordidez e ao desconforto que a narrativa nos impõe durante todo o restante do
filme –nada impedirá Jesus de chegar à conclusão, já ancião, ao fim da vida, de
que seu destino foi e sempre será o sacrifício por meio do qual os preceitos
religiosos mais predominantes do mundo foram criados, mas o simples fato de
acrescentar esse essencial (e, por vezes, genial) parênteses na história de
Cristo lhe valeu polêmicas em muitos cantos do mundo.
Entretanto, o filme de Scorsese é, antes de
qualquer coisa, uma celebração de fé, na maestria com que expõe as contradições
e dilemas humanos a que Cristo teria sido submetido em sua jornada.
No final, uma forma de
entender e melhor aceitar, por meio da sempre pertinente elucidação da arte, a
sua própria crença.
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