Para falarmos desse filme é necessário
recapitular a série “Twin Peaks” que, exibida no início da década de 1990, foi
uma verdadeira revolução na TV ao levar um conteúdo altamente enigmático e
bizarro –cortesia da mente insanamente genial de David Lynch –à uma programação
que só conhecia o convencionalismo e a normalidade. A série começava com o
brutal assassinato da colegial Laura Palmer e, amparada no mistério em torno da
identidade de seu assassino, descortinava uma coleção de personagens
misteriosos e situações sinistras em meio às investigações do agente Dale
Cooper (Kyle MacLachlan).
A pergunta “Quem matou Laura Palmer?”
popularizou-se na época.
Em 1992, o criador David Lynch decidiu então
dirigir uma extensão de sua criatura para o cinema, com este prequel, “Os
Últimos Dias de Laura Palmer”, que a julgar pelo título, se dispunha a
preencher lacunas da série de TV. Entretanto, quem conhece David Lynch sabe que
preencher lacunas não é prioridade alguma em seu processo criativo, e este
filme se revelou tão desafiador quanto os demais que ele fez ao longo dos anos
(ainda mais, talvez, para aqueles que nem sequer acompanharam a miasma de
detalhes que apinhavam a série).
A primeira cena, após os créditos iniciais, é de
um machado destruindo um aparelho de TV: O rompimento de Lynch com a mídia
original de “Twin Peaks”, talvez.
Contrariando previsões, a história começa com o
assassinato de uma tal Teresa Banks, para o qual são designados dois agentes, o
vistoso e tarimbado Chet Desmond (Chris Isaak) e o iniciante Sam Stanley
(Kiefer Sutherland).
Logo ali, Lynch –que participa do elenco como
Gordon, um oficial surdo do FBI –introduz seu hábito de personificar mensagens
subliminares em um personagem palpável e interativo: Neste caso, a bizarra
mulher de vermelho.
A investigação de Desmond e Stanley esbarra no
desleixo e na displicência das autoridades locais, assim como nos meandros
insólitos do caso, e graças a estes, o agente Desmond termina misteriosamente
desaparecido.
Há uma breve e enigmática cena com o agente
Dale Cooper –o protagonista da série, mas que aqui é somente uma participação
muito especial –onde também vemos o agente Phillip Jeffries, vivido por David
Bowie; um agente do FBI desaparecido que, em algum momento, teve um encontro
com os seres mais enigmáticos e amedrontadores da série.
Só então, quando o filme de Lynch já tem lá
seus trinta minutos de duração, um corte indica a passagem de tempo de um ano,
e finalmente a narrativa vai para a cidadezinha de Twin Peaks, onde
acompanhamos a adolescente Laura Palmer (a ótima Sheryl Lee, bem aproveitada
como nunca o foi na série), dias antes dos acontecimentos que dão início à
trama da série.
Na aparência, uma jovem bela e normal da
cidade, Laura é atormentada por eventos que é incapaz de verbalizar aos outros
à sua volta. Uma entidade maligna chamada Bob parece persegui-la, e essa
angústia crescente leva Laura a se envolver com drogas e a desenvolver um
comportamento promiscuo para aflição de sua melhor amiga Donna (Moira Kelly
substituindo a atriz original Lara Flynn Boyle, o quê só amplia a atmosfera
estranha deste filme).
Vários personagens fundamentais à série
reaparecem, alguns apenas em pontas que, aos desavisados, nada irão significar
–é o caso, por exemplo, da bela Mädchen Amick, ou da sinistra Grace Zabriskie
(presença habitual nos trabalhos de Lynch) como mãe de Laura Palmer.
O filme de fato se concentra em Laura Palmer,
num protagonismo que ela nunca teve a chance de exercer na série, o que torna
este um desolador drama de conotações sobrenaturais e metafísicas a respeito de
um desamparo abissal –e nesse aspecto, Lynch se vale amplamente do fato desta
ser uma obra para cinema e não para a TV, dispondo assim de liberdade criativa
e alta censura para conceber cenas ousadas que a série jamais pode
materializar, especialmente duas belas seqüências de nudez envolvendo Sheryl
Lee.
“Os Últimos Dias de Laura Palmer” toca também
no tema delicadíssimo do abuso, explorado de forma contida, porém aprofundada
na série, mas definitivamente bem ilustrado aqui na relação perturbadora e
terrível em que testemunhamos Laura Palmer com seu pai (Ray Wise),
aparentemente tomado pela entidade Bob, com quem ele muitas vezes se confunde.
Apesar de uma tênue sensação de que pontas
soltas estão se juntando (inclusive no que consta à conexão entre o crime
misterioso mostrado na primeira meio hora, o assassinato de Teresa Banks, e
toda a complexa trama que envolve Laura e culmina em sua morte), o filme de
Lynch prima mesmo pela sensação nebulosa de mistério insolúvel do que pelo
esclarecimento de perguntas levantadas, e conhecendo Lynch é exatamente isso
que se deve esperar dele.
Um rico material para se
cultuar e se rever ao longo dos anos em meio aos quais ele consegue manter um
mesmo e indissolúvel fascínio.
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