Certamente, a obra de José Saramago se presta a
infindáveis analogias da parte de quem a lê e, com efeito, o filme que Fernando
Meirelles criou a partir dela preserva essa mesma carga filosófica.
Por quê as pessoas ficam cegas? Parece ser a
pergunta –de cunho muitas vezes metafórico –que ele parece fazer e
deliberadamente evita responder. Como num Buñuel pós-moderno, um mal imprevisto
acomete os cidadãos comuns em suas medíocres circunstâncias, nivelando-os mesmo
quando eles ainda encontram justificativas para se diferenciar.
É um surto de cegueira coletiva que assola a
humanidade sem a menor explicação. Os infectados são todos isolados em
quarentena. Uma mulher (Julianne Moore), aparentemente imune a essa epidemia
finge-se de cega para poder ficar junto do marido (Mark Ruffalo), um médico dos
primeiros a ser infectado.
Dentro desse complexo hospitalar (no qual uns
dois terços do filme se passarão) que nada mais é que uma versão atual do “Vale
dos Leprosos” –sem qualquer infra-estrutura e largados ao léu –alguns, os mais
prepotentes entre eles, almejarão criar uma hierarquia; e como todo autor de
tal plano, munidos da intenção de se colocar no topo da pirâmide.
A mulher do médico (cujo dom, prodigioso ali,
de ainda enxergar ela procura não usar como vantagem sobre ninguém) e o sórdido
Rei da Ala 6 (Gael Garcia Benal) antagonizam-se.
Meirelles usa transgressões típicas de
realizadores europeus (não fazia muito tempo que Gaspar Noé havia lançado seu
perturbador “Irreversível”, abalando público e crítica) sem, no entanto, ir a
fundo no objetivo de chocar a platéia –a cena do estupro coletivo é um exemplo
de sua difícil e estóica tentativa de se manter num equilíbrio entre o
naturalista e o elegante.
Isolados do mundo, os indivíduos acometidos
pela cegueira vão, portanto, regredindo aos estágios mais primários da
civilização, assistidos e às vezes auxiliados pela mulher do médico.
Saído de um trabalho de aclamação sem
precedentes (“Cidade de Deus”) e de uma aplaudida produção no cinema americano
(“O Jardineiro Fiel”), Fernando Meirelles optou por uma escolha ousada neste
projeto, não fugindo do teor contundente proposto no livro de Saramago e
fazendo um filme poderoso, denso e difícil. Suas cenas, um tanto fortes para
serem vistas por expectadores desavisados, esmiúçam a fragilidade das convicções
morais humanas quando colocadas à prova diante de um realidade que soa cruel e
absurda em igual medida: A perda da visão, na concepção de muitos dos
personagens, significa a perda das amarras éticas (ninguém está vendo...), e
tão mais intensa essa decadência ocorre quando não há uma explicação plausível
para tal fato –no terço final, quando enfim saem de dentro do complexo para o
mundo exterior, eles descobrem que a cegueira tomou conta das grandes cidades e
das ruas. Não há mais lei ou ordem, somente caos e desolação. Os cegos pegam o
que querem e o que precisam para suas necessidades básicas, indiferentes à
presença de outrem. A violência é uma linguagem quase natural que adotaram.
Mesmo o grupo de personagens protagonistas (que
ainda incluem Alice Braga e Danny Glover), liderados pelo médico e sua esposa,
não fogem a um certo flerte com o que antes (quando viam) seria impróprio ou
inadequado, na sugestiva –ainda que tímida –cena do banho feminino coletivo.
No desfecho, Meirelles parece remeter vagamente
à Píer Paolo Passolini, em “Teorema”, quando restitui a visão aos personagens
–da mesma forma como o italiano remove o sedutor misterioso do seio da família
burguesa cujos membros foram seduzidos por ele –ao fim da euforia comemorativa
que se segue virá a pergunta, “E agora?”.
Meirelles encerra seu filme
com a expressão algo melancólica de Julianne Moore a contemplar todo o remorso
e a ressaca moral que virá junto com a resposta.
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