quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

O Beijo da Mulher-Aranha

O estilo de Hector Babenco nunca me agradou. Suas narrativas tinham um desleixo cênico proposital que sempre pareceu ser injustificado. Os filmes (mesmo as obras hollywoodianas como “Ironweed”) ostentavam tramas cujo cerne era sempre a miséria humana em suas mais lamentáveis incorporações.
Se o objetivo dele era chocar ou transgredir, ele chegou um tanto quanto atrasado em relação à Píer Paolo Passolini, e não acrescentou algo novo como veio a fazer Lars VonTrier, anos depois. Suas referências cinematográficas, mesmo em seus últimos trabalhos, quando a experiência de anos na direção fica evidente na técnica, resultavam frouxas e sem propósito, e suas inquietações ficavam num meio-termo cômodo que não apontava na direção de nenhum objetivo, fosse ele comercial ou artístico.
Quem for conferir “O Beijo da Mulher-Aranha” sem maiores informações a respeito da produção, baseado exclusivamente em seu histórico de premiações e elogios da crítica obtidos nos anos 1980, pode sair com uma impressão parecida com essa.
Babenco fala sobre o período da opressão da ditadura no Brasil –ou na América Latina como um todo –de maneira superficial o suficiente para que seu registro soe inteligível em qualquer parte do mundo. Perde-se uma profundidade maior no esclarecimento de muitas passagens que ficam vazias de significado, ganha-se num caráter universal que sua narrativa parece almejar.
Talvez seja por isso que, no intimismo brutal e espartano de sua encenação (a trama é confinado numa claustrofóbica cela de quatro paredes durante boa parte de sua duração), Babenco se mostre interessado mesmo em contrapor as índoles de dois prisioneiros completamente opostos que irão interagir ao longo de todo o filme. São eles, Valentim (o saudoso Raul Julia), um preso político, membro de um movimento contundente na luta armada contra as forças do governo –e, por isso mesmo, um dos detentos que recebe mais atenção da truculência dos guardas –e Luis (William Hurt, vencedor do Oscar 1986 de Melhor Ator), um homossexual dado a chiliques e tão avesso à violência que em princípio nos perguntamos o quê faz numa cadeia como aquela.
De início, há uma natural aversão entre eles.
Para Luis, Valentim é um homem bruto, rude e nada compreensivo. Está preso porque é violento e só pela violência sabe se expressar. Um bandido por definição.
Para Valentim, Luis é alguém cuja razão de ser ele não aceita. Não deseja questionar o sistema vigente, como ele, mas, ao ser quem é, questiona a própria natureza. Um homem que afirma ser, por dentro, uma mulher –e seu comportamento afeminado ao extremo, no limite de qualquer caricatura e afetação é uma amostra da entrega sem ressalvas de William Hurt ao papel.
Dois mundos diferentes, tão mais absurdos aos olhos, um do outro, quando somente sua superfície se mostra observável.
Contudo, encarcerados naquele cubículo diminuto os dois realizarão, a despeito de quererem ou não, uma espécie de troca: Conhecerão mais de cada um.
Luis gosta de contar histórias e, em suas narrativas romantizadas, repletas de pensamentos subliminares, ele expõe suas opiniões e suas sensibilidades –é também, num desses entrechos, que surge a enigmática personagem-título da Mulher-Aranha (interpretada por Sonia Braga, belíssima) a representar uma espécie de fuga, não necessariamente da prisão em termos físicos, mas uma fuga de um mundo desgostoso e injusto, ou a própria sedução da fuga.
À medida que essas histórias avançam transmutando a convivência dos dois, as narrativas mudam, também elas: Logo, flashbacks irão mostrar quem esses homens são, o quão sofrido é o contexto da vida de cada um, e quais foram os imprevistos fatores que os levaram àquela cela de prisão.
Babenco promove uma inusitada união entre elementos que soavam incompatíveis na época: O relutante, precário e rudimentar cinema brasileiro realizado à duras penas nos anos 1980, e o cinema comercial norte-americano e seus esforços para alcançar alguma qualidade artística. Do cinema brasileiro, Babenco extrai a ambientação suja, o linguajar despudorado e despojado, a percepção do vulgar e do suburbano –aspectos que ele já soube enfatizar em “Pixote-A Lei do Mais Fraco”. Do cinema americano, ele tira os astros Raul Julia e William Hurt, ambos impecáveis –e coadjuvados por um notável elenco de grandes atores nacionais do período –e um distanciamento algo prepotente das mazelas políticas, físicas e metafísicas do Terceiro Mundo, por meio do qual torna palatável a narração sem muitas concessões ao consolo dessas tragédias humanas.

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