Consagração da diretora neo-zelandesa Jane
Campion no Festival de Cannes –cuja Palma de Ouro ela dividiu com o chinês
“Adeus, Minha Concubina” –este drama árido, áspero e contundente proporcionou o
Oscar de Melhor Atriz para Holly Hunter que emprega maestria no papel da muda
Ada, e Melhor Atriz Coadjuvante para a surpreendente (e ainda bem novinha) Anna
Paquim.
“O Piano” não é um filme feito para agradar o
expectador. Não busca entretê-lo com romances idealizados, nem tampouco se
revela previsível ou mesmo confortável.
A persistente sensação de ar rarefeito que
contamina toda a narrativa do início ao fim remete às impressões da própria
protagonista quando ela chega àquela longínqua, chuvosa e inóspita ilha da
Austrália, onde conhecerá, ao lado da filha pequena (Paquim) o seu marido num
casamento já arranjado. Não há nada de convidativo no lugar. E a perspectiva de
vida que ela observa ali não parece reservar espaço para a felicidade ou a
satisfação. Tudo o que Ada trouxe foi seu piano que ela tinha o hábito de
tocar. E mesmo isso ela será obrigada a deixar para trás: Existem complicações
demais para levar, a ela e à filha, da praia onde aportaram até a aldeia onde
vão viver através das selvas ermas, frias e úmidas para transportar um
trambolho como aquele.
O marido de Ada, Alisdair (Sam Neil), embora
faça o possível para mostrar-se afável não atende seu pedido. É George (Harvey
Keitel), um dos trabalhadores do local quem irá trazer o piano para a aldeia,
após comprá-lo de Alisdair.
Entretanto, para ter um piano é necessário
tocá-lo, ou no mínimo, ter alguém por perto que o faça. Eis então, a
justificativa perfeita para ter a arredia Ada próxima dele.
Entre aulas de piano cada vez mais abusivas da
parte dele e angustiantes da parte dela –que tenta negociar o direito de usar o
piano com a permissão forçada de deixá-lo extrapolar seus limites –a diretora
Campion ousa vislumbrar uma história de amor: Tão paradoxal quanto a
protagonista que não faz um único ruído, mas que é fascinada pelo piano que
emite música, acaba sendo também o ato libidinoso que detona uma paixão
improvável. Fruto certamente da excitação em ser proibido, o rubor dos
encontros de Ada e George culmina num adultério. E Jane Campion emprega uma
sensibilidade feminina para especular sobre os sentimentos de repúdio e asco
pelo abusador que o ambiente rude, distanciado e deprimente permite que se
transformem em ardente atração.
Dona de perfeita noção de tragédia, Campion
orquestra os detalhes por meio dos quais Alisdair irá se dar conta da traição
da mesma forma que manipulou os elementos que fizeram Ada e George consumar sua
atração. E a união de todas essas pontas soltas conduz à intensidade dramática
que impera na meia hora final.
Jane Campion é fascinada, obcecada até, pela
pureza que brota da adversidade –esse é, à rigor, o mote de cada um de seus
trabalhos –aqui, a descoberta dessa pureza se dá pelo curioso uso simbólico do
piano, objeto que surge como pivô das duas grandes mudanças na história de Ada:
Na primeira, como o pretexto plausível para seus encontros com George, e na
segunda, como simbolismo para a mudança que a própria Ada abraça em sua vida
quando ao fim ela o deixa submergir nas águas no instante em que parte embora
da aldeia. Sem muita sutileza, Campion deixa bem claro que uma parte de Ada
morreu ali.
Um sacrifício da
protagonista na busca por seu próprio final feliz.
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