domingo, 15 de setembro de 2024

Lady Blue Shanghai


 O curta-metragem “Lady Blue Shanghai” é um corpo pra lá de estranho, não apenas na filmografia autoral do diretor David Lynch, mas também no contexto em que se insere, uma peça de propaganda para a empresa de moda Dior e seu lançamento de então (o curta é de 2010), a bolsa Lady Dior. Pode-se apreender uma certa publicidade tendo essa informação de antemão, entretanto, tudo o mais nesta obra de dezesseis minutos é puramente David Lynch, com seus enigmas surreais a invadir o que parecem ser zonas obscuras da realidade.

“Lady Blue Shanghai” começa com uma mulher (a sensacional francesa Marion Cottilard, tendo conquistado o Oscar de Melhor Atriz cerca de dois anos antes) chegando num quarto de hotel. De lá, ela percebe, emana uma música que a deixa imediatamente desconfortável; o quarto foi, pelo jeito, invadido e o intruso, quem quer que seja, parece ter deixado uma vitrola tocando uma música. Surgem, então, luzes fantasmagóricas pelo quarto no instante em que ela tira a agulha do disco.

Há, também, uma bolsa azul que se encontra no meio do recinto, envolta numa névoa.

Ao queixar-se a respeito da invasão, as coisas não parecem melhorar: A recepção do hotel envia dois homens –aparentemente investigadores, ou algo assim... –que lhe fazem algumas perguntas. No entanto, esse interrogatório não demora a adquirir circunstâncias ainda mais misteriosas e inesperadas, indicando não só que esses dois homens podem saber mais do que afirmam (e serem mais do que meros investigadores) como a própria mulher talvez traga lembranças que vão aflorando e que podem indicar seu envolvimento em algo nebuloso –pois, gradualmente ela recorda que já esteve lá (em Shanghai!), embora acreditasse ser sua primeira vez e que, na ocasião, encontrou um homem naquela mesma cidade.

“Lady Blue Shanghai” esmiúça um estilo que David Lynch desenvolve como ninguém: O do pesadelo filmado; seus filmes conseguem suscitar a aura de um sonho que o expectador vivencia acordado, lado a lado aos personagens principais. Neste curta-metragem tão impecável e envolvente quanto outros ótimos filmes de Lynch, acompanhamos os percalços dessa mulher perdida nas ruas de Shanghai às voltas com o que parecem ser memórias de um romance turbulento com esse chinês misterioso e sua ligação sempre fragmentada com outra história sugerida em frases enigmáticas (“I Can’t Be Here!” “I wish i could to be with you!”) e em outros elementos visuais –alguns ambientes parecem remeter diretamente ao cenário do ‘filme dentro do filme’ em “Império dos Sonhos” –para então levar essa protagonista a regressar ao quarto de hotel onde tudo começou, onde Lynch, à sua maneira, conduz ela à uma espécie de redenção.

O amor, na gramática cinematográfica de David Lynch, é também ele uma abstração originada dos labirintos do subconsciente, e o diretor expõe essa dicotomia com beleza e primor, como lhe é habitual, através de ecos do cinema de Alain Resnais em geral, e de “O Ano Passado Em Marienbad” em particular.

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