sexta-feira, 30 de março de 2018

Assassinato No Expresso Do Oriente

Os méritos de Kenneth Brannagh como diretor são oscilantes: Ele começou bem, com indicação ao Oscar e tudo, em “Henrique V” –que transformou-o numa espécie de Laurence Olivier moderno, o primeiro nome em adaptações cinematográficas de Shakespeare –e, dando incentivo a essa alcunha lançou “Muito Barulho Por Nada”, a suntuosa versão de “Hamlet” e até uma versão musical de “Amores Perdidos” (com Alicia Silverstone, mal lançado por aqui) ao longo da década de 1990. Em meio à eles, alguns filmes menores como o suspense “Voltar A Morrer”, o drama “Para O Resto de Nossas Vidas” e o metalinguístico “Sonhos de Uma Noite de Inverno” entre outros.
Nos anos recentes, Brannagh investiu em projetos de orientação mais comercial: O primeiro “Thor”, da Marvel Studios, a versão em live-action de “Cinderella” para a mesma Disney que produziu a animação, e “Operação Sombra” (uma das muitas tentativas de reiniciar a franquia Jack Ryan) –os quais deixaram mais visíveis suas limitações enquanto realizador.
Como ator, as coisas melhoram um pouco: Criado com base no teatro inglês, Brannagh é, e sempre foi, talentoso, conseguindo quase sempre uma emocionante conciliação de sua verve com o âmago do personagem (um exemplo claro disso é sua belíssima interpretação como –vejam só! –Laurence Olivier, em “Sete Dias Com Marilyn”).
Pois, nessa nova versão de “Assassinato No Expresso Do Oriente” (na versão antiga de 1974, o título não tinha o ‘Do’...), é tanto o Kenneth Brannagh diretor quanto o ator que vemos atuar no filme. E claro que, como ator, Brannagh é de uma precisão exemplar: No papel do famoso detetive Hercule Poirot (que antes foi maravilhosamente vivido por Albert Finney), Brannagh pontua cada peculiaridade do personagem com exuberância –ao contrário do filme de Sidney Lumet, no qual Poirot vai se impondo aos poucos como protagonista, neste aqui, a narrativa já se inicia com uma postura subjetiva, nomeando Poirot quase como os olhos da platéia.
O filme já começa afastando-se de comparações com a produção antiga em sua abertura, sem qualquer menção à sensacionalista introdução do filme anterior, preferindo detalhar o exotismo do Muro das Lamentações em Jerusalém, onde a trama se inicia, numa manobra muito mais condizente com Agatha Christie –inclusive, o detalhe do bigode de Poirot, como descrito no livro, é seguido à risca pelo filme.
Célebre por seu raciocínio rápido, Poirot deixa Jerusalém a fim de prolongar suas férias depois da elucidação prodigiosa de mais um caso (registrado na frenética cena inicial). Com a ajuda de seu grande amigo Bouc (Tom Bateman), ele obtém um leito para viajar no lotado Expresso do Oriente com destino à França. Entre os passageiros, está o milionário Ratchett (Johnny Depp, no papel que foi de Richard Widmark) que, paranóico, propõe a Poirot o cargo de guarda-costas. Poirot nega só para descobrir Ratchett assassinado na manhã seguinte, quando o trem (junto com todos os seus ocupantes) se vê temporariamente detido nos trilhos pelas neves das montanhas.
Com o tempo contando contra ele (afinal, em poucas horas, o trem será liberado, chegará na estação e o assassino, quem quer que seja, ficará livre), Poirot inicia uma investigação através da qual descobre que cada passageiro tem algum segredo a esconder.
No que diz respeito à direção, Brannagh parece ocasionalmente querer afastar-se das comparações com Lumet ao impor um ritmo e um estilo de filmagens que ressaltam as tomadas virtuosas de câmeras, recusando a rendição a um formato teatral tão propício ao enredo (até algumas cenas de ação algo deslocadas ele chega a encaixar na narrativa) –mas, é claro que, sendo ele um profissional formado no teatro, Brannagh não resiste e lá pelas tantas, o filme abre margem para momentos que sugerem entradas e saídas de cenas –disfarçadas com os floreios da edição –e até monólogos intensos, sobretudo, no trecho final onde eles são reservados ao protagonista.
O quê parece de fato tornar este “Assassinato No Expresso Do Oriente” um passatempo interessante é a modificação que a troca de intérpretes promove à percepção do filme em relação à obra de 1974: O elenco que Brannagh reuniu não poderia deixar de ser estelar. No lugar de Sean Connery, por exemplo, temos agora Leslie Odom Jr. (que confere uma atitude mais vulnerável e hesitante ao personagem) e, em vez de Vanessa Redgrave como seu par romântico, a sensacional Daisy Ridley (de “Star Wars”); no papel que foi de Anthony Perkins, o menos irrequieto e mais contido Josh Gad; a grande Judi Dench confere mais humanidade e primor do que Wendy Hiller à sua Princesa Dragomiroff; no papel do mordomo, Derek Jacobi (presença constante nos filmes de Brannagh) substitui John Gielgud; Manuel Garcia-Rulfo (da versão recente de “Sete Homens e Um Destino”) se sai bem num papel que faz as vezes do personagem de Denis Quilley; o enigmático casal de aristocratas, antes interpretados por Michael York e Jacqueline Bisset (bem mais afáveis), são aqui personificados com agressividade por Sergei Polunin e Lucy Boynton; o magnífico Willen Dafoe substitui muito bem Colin Blakely; a ótima Michelle Pfeifer oferece um belo e diferenciado trabalho no papel que foi de Lauren Bacall; e Penélope Cruz compõe com solidez (ainda que menos tempo de cena), a mesma personagem vivida por Ingrid Bergman (e que deu a ela o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante).
A cereja no todo do bolo é o gancho explícito de indisfarçável sanha mercadológica para uma possível continuação –que, em termos literários veio a ser “Morte Sobre O Nilo”; em termos cinematográficos, houve uma adaptação em 1978, com Peter Ustinov substituindo Finney como Poirot de forma um pouco decepcionante. Este pode não ser um filme tão marcante assim, mas até que não seria má idéia ver Kenneth Brannagh novamente como Poirot decifrando outros crimes no Egito.

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