Os altos e baixos na trajetória de M. Night
Shyamalan como autor reconhecido e aclamado refletem a curiosa e demorada
gênese de “Vidro” como projeto cinematográfico.
Quando lançou “Corpo Fechado” na esteira do
sucesso de “O Sexto Sentido”, Shyamalan experimentou um fenômeno ainda mais
inusitado e louvável do que o sucesso de público e crítica da obra anterior:
Inicialmente recebido com aparente desprezo por aqueles que julgavam “Corpo
Fechado” um correspondente atípico de “O Sexto Sentido”, o filme cresceu na
memória do público e dos cinéfilos aos poucos, com o passar do tempo,
transformando-se em um dos grandes cult-movies do cinema.
De lá pra cá, entre sucessos originados de sua
reconhecida fórmula de fazer cinema e projetos que por vezes caíam na incompreensão
e na indiferença, M. Night Shyamalan foi constantemente indagado sobre uma
vindoura continuação para “Corpo Fechado” –uma ideia a qual, durante um bom
tempo, ele foi abertamente arredio.
A maneira como ele correspondeu ao anseio do
público foi bem ao seu gosto, improvável e inesperada: Em “Fragmentado”, de
2016 (exatos dezesseis anos, portanto, do lançamento de “Corpo Fechado”), ele
introduz uma cena final onde revelava que o protagonista daquele filme, David
Dunn, vivido por Bruce Willis, existia, por assim dizer, no mesmo universo que
Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) e os outros personagens de “Fragmentado”.
Estava aberta a porta para a esperada
continuação não apenas de “Corpo Fechado”, mas agora de “Fragmentado” também.
Com efeito, a trama se inicia logo depois dos
eventos daquele filme. Após o rapto de garotas cuja sobrevivente foi a jovem Casey
(Anya Taylor-Joy), e o desenvolvimento de uma 24ª personalidade bestial
–adequadamente chamada ‘The Beast’ –a Horda (como é apelidado o indivíduo de
múltiplas personalidades vivido por McAvoy) entra no radar do vigilante David
Dunn que tem agido nas sombras neutralizando criminosos na Philadelphia na
última década com o auxílio logístico de seu filho Joseph (Spencer Treat
Clarke, um rapaz aqui, ainda uma criancinha em “Corpo Fechado”).
O embate entre personagens tão antagônicos
quanto antológicos não tarda muito a acontecer, escrito e dirigido com aquele
primor desigual que Shyamalan parecia ter perdido nos últimos tempos, mas que
recuperou em “Fragmentado”.
É quando Dunn e a Horda são capturados e
jogados numa clínica psiquiátrica –em uma guinada que aproxima “Vidro” do
clássico “Um Estranho No Ninho” –que as intenções de Shyamalan começam a ficar
mais claras: Entra em cena a personagem da Dra. Ellie Staple (interpretada com
o esperado ar de petulância intelectual por Sarah Paulson).
Staple representa a descrença. Ela não acredita
que pessoas normais possam desenvolver características extraordinárias que as
aproximam dos superheróis de quadrinhos –a rigor, a premissa de “Corpo Fechado”
–e, dentro das instalações psiquiátricas, tratará de enfraquecer a convicção de
David, de Kevin (e todas as personalidades dentro dele) e também do sedado
Elijah Price (Samuel L. Jackson), encarcerado desde que foi descoberto
tratar-se do perigoso Mr. Glass; na concepção dele próprio, um vilão de HQs que
compensa a fragilidade do próprio corpo (ossos quebradiços como vidro) com uma
mente brilhante e aprimorada.
Staple confronta os três protagonistas
fantásticos com embasamentos factuais que nivelam ao patamar do normal as suas
proezas, e não deixa de soar com isso aquilo que a narrativa de fato quer fazer
dela: Uma estraga-prazeres.
Entretanto, a mente de Elijah não pode ser
contida ou domesticada. Antes mesmo que a doutora perceba, já existe um plano
detalhado em gestação, e que certamente envolve a fuga dele e da Horda de seus
confinamentos.
A essa sequência concebida com zelo e critério
(e com um viés emocional inédito nos filmes anteriores), Shyamalan acrescenta
todas as considerações morais, pessoais, sentimentais e filosóficas que ele
atribui a todos os seus melhores trabalhos: “Vidro” é, como “Corpo Fechado”,
uma variação do conceito de histórias em quadrinhos em atividade num mundo real
–assunto bastante atual diante do sucesso retumbante do Universo Marvel nos
cinemas –mas, é também um olhar preocupado e válido sobre as neuroses
imprevisíveis escondidas na sociedade (argumento presente em “Fragmentado”), e
une todas essas considerações numa conclusão válida e pertinente sobre a
família; e para tanto, são fundamentais à narrativa as participações também dos
entes queridos relacionados à cada um dos três protagonistas, Joseph, o filho
de Dunn, que busca ser uma força indireta na cruzada do pai; Casey, a vítima
que escapou da fúria de ‘The Beast’ por ser reconhecida por ele como uma igual;
e a mãe de Elijah (Charlayne Woodard) que sempre experimentou a aflição pelo
corpo frágil do filho e o orgulho por sua inteligência fora do comum.
“Vidro”, assim, embora seja também sobre o bem
contra o mal (como toda boa HQ), ao mesmo tempo embaralha essas impressões com
algumas dinâmicas ambíguas, porém, revela-se mesmo um tratado sobre a fé contra
a incredulidade. A disposição para acreditar que o extraordinário é real e
possível contra o conformismo de justificá-lo com pretextos impessoais.
E nessa disputa, Shyamalan
escolhe claramente um lado sem um pingo de dúvida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário