terça-feira, 9 de julho de 2019

Vidro

Os altos e baixos na trajetória de M. Night Shyamalan como autor reconhecido e aclamado refletem a curiosa e demorada gênese de “Vidro” como projeto cinematográfico.
Quando lançou “Corpo Fechado” na esteira do sucesso de “O Sexto Sentido”, Shyamalan experimentou um fenômeno ainda mais inusitado e louvável do que o sucesso de público e crítica da obra anterior: Inicialmente recebido com aparente desprezo por aqueles que julgavam “Corpo Fechado” um correspondente atípico de “O Sexto Sentido”, o filme cresceu na memória do público e dos cinéfilos aos poucos, com o passar do tempo, transformando-se em um dos grandes cult-movies do cinema.
De lá pra cá, entre sucessos originados de sua reconhecida fórmula de fazer cinema e projetos que por vezes caíam na incompreensão e na indiferença, M. Night Shyamalan foi constantemente indagado sobre uma vindoura continuação para “Corpo Fechado” –uma ideia a qual, durante um bom tempo, ele foi abertamente arredio.
A maneira como ele correspondeu ao anseio do público foi bem ao seu gosto, improvável e inesperada: Em “Fragmentado”, de 2016 (exatos dezesseis anos, portanto, do lançamento de “Corpo Fechado”), ele introduz uma cena final onde revelava que o protagonista daquele filme, David Dunn, vivido por Bruce Willis, existia, por assim dizer, no mesmo universo que Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) e os outros personagens de “Fragmentado”.
Estava aberta a porta para a esperada continuação não apenas de “Corpo Fechado”, mas agora de “Fragmentado” também.
Com efeito, a trama se inicia logo depois dos eventos daquele filme. Após o rapto de garotas cuja sobrevivente foi a jovem Casey (Anya Taylor-Joy), e o desenvolvimento de uma 24ª personalidade bestial –adequadamente chamada ‘The Beast’ –a Horda (como é apelidado o indivíduo de múltiplas personalidades vivido por McAvoy) entra no radar do vigilante David Dunn que tem agido nas sombras neutralizando criminosos na Philadelphia na última década com o auxílio logístico de seu filho Joseph (Spencer Treat Clarke, um rapaz aqui, ainda uma criancinha em “Corpo Fechado”).
O embate entre personagens tão antagônicos quanto antológicos não tarda muito a acontecer, escrito e dirigido com aquele primor desigual que Shyamalan parecia ter perdido nos últimos tempos, mas que recuperou em “Fragmentado”.
É quando Dunn e a Horda são capturados e jogados numa clínica psiquiátrica –em uma guinada que aproxima “Vidro” do clássico “Um Estranho No Ninho” –que as intenções de Shyamalan começam a ficar mais claras: Entra em cena a personagem da Dra. Ellie Staple (interpretada com o esperado ar de petulância intelectual por Sarah Paulson).
Staple representa a descrença. Ela não acredita que pessoas normais possam desenvolver características extraordinárias que as aproximam dos superheróis de quadrinhos –a rigor, a premissa de “Corpo Fechado” –e, dentro das instalações psiquiátricas, tratará de enfraquecer a convicção de David, de Kevin (e todas as personalidades dentro dele) e também do sedado Elijah Price (Samuel L. Jackson), encarcerado desde que foi descoberto tratar-se do perigoso Mr. Glass; na concepção dele próprio, um vilão de HQs que compensa a fragilidade do próprio corpo (ossos quebradiços como vidro) com uma mente brilhante e aprimorada.
Staple confronta os três protagonistas fantásticos com embasamentos factuais que nivelam ao patamar do normal as suas proezas, e não deixa de soar com isso aquilo que a narrativa de fato quer fazer dela: Uma estraga-prazeres.
Entretanto, a mente de Elijah não pode ser contida ou domesticada. Antes mesmo que a doutora perceba, já existe um plano detalhado em gestação, e que certamente envolve a fuga dele e da Horda de seus confinamentos.
A essa sequência concebida com zelo e critério (e com um viés emocional inédito nos filmes anteriores), Shyamalan acrescenta todas as considerações morais, pessoais, sentimentais e filosóficas que ele atribui a todos os seus melhores trabalhos: “Vidro” é, como “Corpo Fechado”, uma variação do conceito de histórias em quadrinhos em atividade num mundo real –assunto bastante atual diante do sucesso retumbante do Universo Marvel nos cinemas –mas, é também um olhar preocupado e válido sobre as neuroses imprevisíveis escondidas na sociedade (argumento presente em “Fragmentado”), e une todas essas considerações numa conclusão válida e pertinente sobre a família; e para tanto, são fundamentais à narrativa as participações também dos entes queridos relacionados à cada um dos três protagonistas, Joseph, o filho de Dunn, que busca ser uma força indireta na cruzada do pai; Casey, a vítima que escapou da fúria de ‘The Beast’ por ser reconhecida por ele como uma igual; e a mãe de Elijah (Charlayne Woodard) que sempre experimentou a aflição pelo corpo frágil do filho e o orgulho por sua inteligência fora do comum.
“Vidro”, assim, embora seja também sobre o bem contra o mal (como toda boa HQ), ao mesmo tempo embaralha essas impressões com algumas dinâmicas ambíguas, porém, revela-se mesmo um tratado sobre a fé contra a incredulidade. A disposição para acreditar que o extraordinário é real e possível contra o conformismo de justificá-lo com pretextos impessoais.
E nessa disputa, Shyamalan escolhe claramente um lado sem um pingo de dúvida.

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