sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Os Pássaros Feridos

Obra plenamente cinematográfica, “Os Pássaros Feridos” foi realizado em formato de minissérie e não de longa-metragem por uma razão bastante pontual: As duas ou três horas usuais de duração de um filme para cinema jamais dariam conta dos percalços registrados  no best-seller de Colleen McCullough. Tal empreitada exigia uma duração muito maior, capaz de abranger a percepção desigual de tempo e os numerosos eventos imprescindíveis presentes na história.
Não que não tenham tentado faze-lo: Por muito tempo, um projeto cinematográfico, protagonizado por Christopher Reeve e Jane Seymour (o mesmo par romântico do celebrado “Em Algum Lugar do Passado”) foi acalentado e planejado, sempre esbarrando na questão fundamental da trama espetacularmete ampla e detalhada que o livro tinha, incapaz de ser encapsulada com satisfação numa metragem convencional.
Conscientes disso, os produtores optaram por realizar uma minissérie, ou se preferir, um grande filme de oito horas de duração.
Dirigido com brilho e sensibilidade pelo canadense Daryl Duke, “Os Pássaros Feridos” começa, portanto, contando a história do padre inglês Ralph De Bricassart (Richard Chamberlain, memorável no papel) que, por seu temperamento pouco comum para um sacerdote religioso, é despachado para a paróquia de um vilarejo na Austrália, bem distante do pólo de interesses religiosos do Vaticano, onde se concentram suas ambições.
Lá, Ralph se torna amigo da mulher mais rica da região, a Sra. Mary Carson (a veterana Barbara Stanwyck, numa participação que logo se revela formidável), proprietária de uma fazenda de ovelhas.
Ralph também se afeiçoa à família Cleary cujo patriarca se torna capataz e os filhos, eficientes empregados da fazenda. Há também uma menina, a jovem Meggie que fica sob os cuidados do padre Ralph, responsabilizando-se por sua educação.
No roteiro brilhantemente atento às dinâmicas que se constroem nota-se um interesse pelas tensões que aparecem –e que, na sua maioria, têm a haver com o fato do padre Ralph ser um homem boa-pinta e bem apessoado que desperta a atenção das mulheres, inclusive da Sra. Carson. Ela também compreende as disfarçadas obsessões que Ralph traz dentro de si e que o fazem, em parte, inadequado à abnegação do sacerdócio. E no ressentimento do desejo por Ralph que, ela sabe, ele jamais corresponderá, a Sra. Carson, em seus últimos dias de vida, dá o golpe de misericórdia que representará o estopim de toda a trama: Sem filhos ou familiares próximos, presumia-se que ela deixaria sua imensa fortuna aos únicos merecedores de fato –à Meggie e sua família. Entretanto, em seu testamento Mary acrescenta uma cláusula desconcertante; a decisão acerca de sua fortuna ficará a cargo do padre Ralph. É ele quem decidirá se a cláusula será anulada e o testamento, como especificado, deixará toda a fortuna dela para os Cleary ou, do contrário, o próprio Ralph será o único a responder legalmente por toda a riqueza e propriedades da milionária.
Sabendo que ter uma fortuna como aquela em seu nome atrairá a atenção do Vaticano, Ralph mantém a cláusula de Mary, o que relega a família de Meggie à contínua vida de trabalho e subserviência, não obstante a generosidade que Ralph (agora seu novo patrão) demonstra com eles.
Os anos passam –e outros eventos, como a morte de um irmão de Meggie e a partida de outro, se sucedem –e Meggie se torna uma mulher belíssima (interpretada agora pela sensacional Rachel Ward) sem a menor intenção de esconder seus sentimentos pelo padre Ralph que, como estava em seus planos, é convidado a trabalhar no Vaticano junto do conceituado arcebispo Vittorio (o espetacular Christopher Plummer).
As esparsas visitas de Ralph à fazenda, entretanto, revelam o forte desejo reprimido que ele também tem por Meggie –“Os Pássaros Feridos” é, pois, sobre isso, o embate íntimo experimentado por Ralph e Meggie entre a atração do amor e a devoção à ideologia, forças tão opostas quanto igualmente poderosas.
O elemento particularmente notável de sua trama romântica é justamente a percepção da passagem inexorável do tempo, bem como a somatória implacável de circunstâncias adversas, revelando-se incapazes de tolher esse sentimento: Os anos se passam, Ralph escala consideravelmente a honorável hierarquia do Vaticano, e Meggie até mesmo tenta em vão procurar a felicidade nos braços de um marido, Luke (vivido por Bryan Brown que casou-se com Rachel na vida real), mas absolutamente nada faz com que o casal apaixonado esqueça um ao outro.
No clímax da história, Meggie retira-se numa pousada à beira-mar em busca de um pouco de paz da atribulação que transformou-se sua vida –após o casamento com Luke e dele ter uma filha, Meggie experimenta a negligência matrimonial na forma de abandono –e as circunstâncias enfim trabalham juntas para ela e Ralph lá se encontrarem. Ali ela engravida dele; e a real paternidade de seu filho, Dane (vivido na fase adulta por Philip Anglim), é um segredo que Meggie irá guardar até o último momento de sua dolorosa saga.
Embora cause certa irritação as indecisões do padre Ralph –decisões essas que, ainda assim, são essenciais aos rumos da trama –“Os Pássaros Feridos” é tão bem interpretado por seu elenco, tão brilhantemente concebido por sua equipe técnica (a belíssima trilha sonora, a cargo do talentoso Henry Mancini, de “A Pantera Cor-de-Rosa”, ganhou um Globo de Ouro), e tão cuidadosamente bem narrado e conduzido por seu diretor Daryl Duke que os eventuais lapsos que poderiam lhe prejudicar só lhe enfatizam os acertos.
É uma jornada poderosa, reflexiva, romântica e não raro melodramática que, a despeito do protagonismo de Ralph De Bricassart, não tarda a centralizar-se em Meggie, a personagem principal de fato e de direito, e sua trajetória de dor, abnegação, e oposição a Deus que ela enxerga, do início ao fim, como executor onipresente de todos os seus infortúnios, para então compreender, já no desfecho depois de muita água passada debaixo da ponte, o quão inexoráveis são os percalços atribulados da vida e o quão fundamental é o valor do perdão.

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