Há, em princípio, algo de diferenciado entre
este filme e os outros trabalhos da diretora Mary Harron (de obras como
“Psicopata Americano”): Uma simpatia bastante genuína para com sua personagem
principal, embora ainda assim, seu usual tom cáustico se mantenha.
Ao biografar a Rainha das Pin-Us, Harron
aproveita para lançar um olhar cheio de ironia crítica sobre as contradições de
uma época, e a forma como, no contraste com o presente, essa mesma época se
mostra de traços nostálgicos tão curiosos e improváveis.
Interpretada com vigor e certeza por Gretchen
Mol (que faz desta a melhor atuação de sua carreira), a protagonista Bettie
Page surge já colhida no furacão de interesses ideológicos que polarizaram os
EUA dos anos 1950: De um lado, o conservadorismo ferrenho de políticos que instituíram
comitês para julgar atividades que eles supunham por contravenções, do outro, a
liberdade de expressão (inclusive no que tange ao erotismo) buscada por
profissionais e artistas que especularam os mais diversos meios de mídia, em
especial, as revistas fotográficas obscuras e clandestinas, produzidas tão
somente para atender a demanda de cidadãos comuns com gostos... peculiares.
Há um flashback (como há em muitos filmes com
essa natureza biográfica na trama) e regressamos até os anos 1930, quando
descobrimos que, desde a infância até o princípio da vida adulta, nos anos
1940, Bettie já experimentava formas diversas de abuso: Primeiro, do próprio
pai, depois do marido (ponta do ator Norman Reedus, da série “The Walking
Dead”) com quem teve um rápido e malfadado matrimônio, e até mesmo de
desconhecidos, numa sequência particularmente desconcertante.
É notável que desde o início, o filme de Harron
já deixa evidente em sua sempre inocente protagonista (apesar das várias
facetas de sordidez do mundo que a cerca) um fascínio contumaz e fidedigno
pelas virtudes da religião –que ela terminou abraçando no final.
Já entramos no início da década de 1950 quando
Bettie decide ir morar em Nova York, inicialmente com planos de fazer um curso
de interpretação teatral, ministrado pelo personagem do ator Austin Pendleton
(de “Um Amor A Cada Esquina” e “Uma Mente Brilhante”).
Com seu desempenho no curso prosperando a
passos de tartaruga e os parcos empregos disponíveis apenas de secretária ou
garçonete, Bettie procura completar sua renda fazendo ensaios fotográficos, os
quais, do início ao fim, ela encara com ingenuidade e sem qualquer malícia.
Mas, não a diretora Mary Harron. Ela deixa bem clara a escala gradual que as
fotos de Bettie vão galgando em direção à pornografia que a fará notória –do
inicial e banal ensaio à beira de uma praia, até os ensaios pagos na agência de
revistas gerenciada pelo casal Klaw (Lili Taylor e Chris Bauer) que a
fotografam usando roupas de couro e botas de salto alto ao estilo ‘bondage’ até
as fotos mais picantes –enfatizando o teor cada vez mais subversivo na
trajetória da personagem e, ao mesmo tempo, proporcionando ao público
(sobretudo, o masculino) as cenas de nudez total da esplêndida Gretchen Mol que
ele tanto quer ver!
O filme –no qual até então predominava uma
fotografia em preto & branco –adquire cores quando (a exemplo de “Touro
Indomável”, de Martin Scorsese) mostra as cenas filmadas por câmeras Super 8,
ou os ensaios fotográficos de Bettie nas revistas.
Também o filme fica colorido toda vez que
Bettie viaja para Miami, onde conhece a fotógrafa Bunny Yeager (Sarah Paulson)
que com ela faz alguns de seus mais notáveis ensaios, inclusive um para a ainda
emergente revista Playboy.
Em algum momento, a fotogenia natural e
cintilante de Bettie a faz destacar-se de todas as demais modelos e a torna
famosa até para seu próprio prejuízo: Ela é reconhecida nos ensaios e nas
audições para teatro, nos restaurantes e nos lugares públicos.
Até que, por fim, é intimada a depor num comitê
governamental (interessante que Harron tenha escalado como um dos políticos do
comitê, o ator David Strathairn, que estrelou o filme de mesmo tema, “Boa Noite e Boa Sorte”, num papel de posições opostas), onde Bettie sequer tem a chance
de dar sua própria versão dos fatos depois de ser deixada em espera por 12
horas (!).
A redenção, para Bettie –o que Mary Harron
torna até bastante natural –se encontra na fé.
Produzido pela HBO Films, e
criticado por alguns por seu caráter seletivo dos percalços mostrados na
trajetória real de Bettie Page, o filme de Mary Harron é irônico por, ao
contrário das demais obras independentes que ela realizou, fazer um certo
esforço para não se mostrar tão desconfortável ao expectador, função que, a
despeito de alguma infidelidade factual, ela cumpre com mérito, sobretudo,
graças à bela e carismática presença de Gretchen Mol.
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