sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Cold Fish

Certos diretores tem esse dom peculiar de visitar extremos com naturalidade flagrante evidenciando pulsões de psicopatia que brotam de índoles comuns e aparentemente inocentes. No cinema japonês, poucos são os diretores que compreendem essas áreas escuras da alma humana tão bem quanto Sion Sono e Takashi Miike.
Ambos são oriundos de uma mesma geração de realizadores –surgidos quando o cinema japonês experimentava, nos anos 1990, uma nova tendência onde os meandros existenciais da tecnologia serviram de motor aos expedientes do filme de terror –e ambos visitaram o ápice da versatilidade em suas filmografias: De obras alternativas e ousadas a produções de orientação inesperadamente comercial.
Dentre os dois, Sion Sono é o que mais se mantém num nicho específico, definido por códigos que podem ser facilmente relacionados ao terror e ao suspense, mas cuja complexidade na evolução da premissa e na estrutura narrativa embaralha as noções de gênero agregando às suas obras uma frequente imprevisibilidade.
Lançado em 2010, “Cold Fish” vagamente se inspira no que foi uma história real –ainda que inúmeros de seus desenlaces sejam difíceis de engolir –os assassinatos perpetrados pelo casal de serial-killers Gen Sekine e Hiroko Kazama, proprietários de um pet shop.
A narrativa de Sono, enganosamente simples, nos coloca no cerne de uma família japonesa de classe média: O pai, Sr, Syamoto (Mitsuru Fukikoshi, de “O Samurai do Entardecer”), a jovem madrasta Taeko (a bela Megumi Kagurazaka, de “13 Assassinos”, que depois casou-se com Sion Sono) e a filha Mitsuko (Hikari Kajiwara).
Há um desconforto da parte de cada um por diversas razões que o talento de Sono é hábil em expor nas breves cenas bem calibradas que se seguem: A filha, rebelde, não suporta o pai nem a madrasta e se afasta deles com o pretexto de namorados desprezíveis; o pai é displicente com o comportamento da filha, pois sua ausência de casa é bom sinal –pode tentar descolar uma transa com a esposa. Já, Taeko, omissa e submissa como toda dona de casa japonesa esconde do marido como pode suas obsessões, como o masoquismo e o tabagismo.
Numa manobra que aproxima “Cold Fish” da desconstrução anárquica do núcleo familiar proposta pelo italiano Pier Paolo Passolini em “Teorema”, Sion Sono introduz um personagem que surge em cena como um abalo sísmico: Ao atender um chamado onde Mitsuko foi presa por roubo, Syamoto conhece o Sr. Murata (Denden, de “A Cura”) que, como ele, é proprietário de uma loja de peixes tropicais.
Syamoto e Murata contrastam um com o outro: Syamoto é tímido e introvertido, Murata é exuberante e articulado. A esposa de Syamoto (ainda que linda) não tem com ele o mesmo casamento ardente que Murata ostenta com sua própria mulher, Aiko (Asuka Kurosawa, de “Silêncio”). E o estabelecimento de Syamoto exala humildade enquanto que o de Murata é todo soberba.
A grama do vizinho, no princípio da narrativa de Sono, é sempre mais verde.
Envolvente, Murata logo atrai a família de Syamoto para junto de si –e então começam a aparecer seus instintos corruptíveis. Mitsuko passa a trabalhar para Murata como uma das muitas jovens vestidas em roupas sumárias em sua loja para atrair clientes. Logo é Taeko quem cai em suas garras –ele identifica nela suas tendências masoquistas e transforma-se em seu amante.
É assim que, pouco a pouco, ele enreda Syamoto, cujo acanhamento e hesitação são tamanhos que sequer consegue expressar suas dúvidas em tornar-se sócio dele.
Esses elementos de gradual manipulação doméstica não duram muito, pois o diretor reserva mais cartas na manga: E a mais magnífica delas diz respeito a uma guinada brutal no início de sua segunda metade, quando o que era simplesmente persuasivo e insidioso se torna sórdido e hediondo.
Nas mãos de um diretor com menos talento, e capacidade menor para manipular o material complicado e espinhoso que tem em mãos, “Cold Fish” seria um filme de convenções abissais –Sion Sono o transforma num registro audacioso de facetas obscuras da classe média, e um estudo atrevido e surpreendente de um personalidade em metamorfose.
Amparado em atores que dão conta maravilhosamente bem do recado, Sion Sono conduz seu filme flertando corajosamente com o psicologicamente inverossímil e com o visualmente degradante, nunca se permitindo cair em nenhuma dessas armadilhas.
Seu controle sobre os elementos francamente repelentes e aterradores da narrativa não se perde nem mesmo quando a trama e seus desdobramentos encontram as consequências extremas registradas nos quinze minutos finais.
Uma realização magnífica para estômagos fortes.

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