terça-feira, 26 de maio de 2020

Monster - Desejo Assassino

Em meados de 2003, a carreira da atriz Charlize Theron havia entrado numa seara complicada: Embora já tivesse estagnado ao estrelar projetos genéricos que insistiam em rotulá-la –sobretudo, diante da grande beleza –como os pouco notáveis “Doce Novembro”, “Lendas da Vida” e “Encurralados”, ela também não havia ainda atingido um status que a consolidasse como estrela.
A saída para ser vista como fulgurante atriz capaz de reinventar-se quando necessário aos olhos da indústria –e, se possível, levar uns prêmios pelo esforço –surgiu quando ela decidiu radicalizar e estrelar (além de produzir) o filme independente de estréia da diretor Patty Jenkins, que atrevia-se a biografar a trajetória (ou, ao menos parte dela) de Aileen Wuornos, a primeira mulher condenada à morte na cadeira elétrica sob acusação de ser uma serial-killer.
De fato, para o papel, Charlize transformou-se: Deixou de lado a pele macia e bem cuidada, colocou próteses dentárias que alteraram drasticamente o aspecto de seu rosto, pôs lentes de contato castanhas sobre seus lindos olhos azuis, e engordou alguns quilos –uma metamorfose completa como os membros da Academia costumam adorar e enaltecer de tempos em tempos: Desnecessário dizer, portanto, que esse esforço lhe valeu o Oscar 2004 de Melhor Atriz, além do Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática e o Urso de Prata no Festival de Berlim. Lhe valeu também um sopro de renovação na carreira: A partir de então, Charlize passou a ser requisitada para projetos mais nobres e distintos, com realizadores confortáveis com sua capacidade e versatilidade, uma chance e tanto para um carreira que provou-se merecedora: Ela tornou a concorrer ao Oscar em outras duas ocasiões (em 2006, por “Terra Fria” e neste ano mesmo, por “O Escândalo”), compareceu em projetos tão distintos e audaciosos como a ação “Atômica”, a ficção científica “A Estrada” e  a aventura “Branca de Neve e O Caçador”, e marcou presença numa das mais prestigiadas produções dos últimos tempos: “Mad Max-Estrada da Fúria”.
Muito disso se deve à Aileen Wuornos, papel que ela desempenha com ferocidade do início ao fim deste filme carregado de desilusão.
Prostituta de rua desde os 13 anos de idade, Aileen –como notamos na narração em off que acompanha o filme –ainda acreditava num amanhã melhor e no ‘sonho americano’, alimentada por certa ingenuidade, uma característica que, no caso dela em especial, flertava com certa insanidade. Chegando por acaso num bar gay, Aileen conhece a jovem e deslocada Selby Wall (Christina Ricci, presença assídua de produções independentes naqueles anos), cuja homossexualidade a tornou uma pária aos olhos da família.
Embora não fosse lésbica e verbalizasse a pouca vontade de se relacionar com Selby, Aileen, talvez motivada pela própria carència, acaba por se envolver com ela. Quando a convence a deixar a casa dos tios onde morava, Aileen a engana (e, em certa medida, engana a si própria também) com uma história na qual deixará de ser prostituta e arrumará um emprego onde ganhará dinheiro para que as duas possam viver bem.
Ao confrontar Aileen com o exato oposto daquilo que sonhava, a diretora Patty Jenkins desmonta cada uma das facetas do ‘american way of life’, escancarando para a plateia uma América medíocre, suja, amoral, doentia e amargurada.
Contudo, as razões da terrível derrocada de sua protagonista já estavam plantadas antes mesmo disso: Quando ainda tentava obter dinheiro para o segundo encontro com Selby, Aileen decide fazer alguns programas. Ela entra no carro de um cliente que a amarra e tenta estuprá-la com uma chave de roda (!), mas consegue soltar-se e o mata a tiros.
Mais tarde, conforme se dá conta de que a polícia não conseguiu avançar nas investigações acerca do homicídio, e de que suas chances para tentar um emprego honesto no mercado de trabalho são ínfimas, Aileen vai, aos poucos, se convencendo de que os homens pérfidos que atendia eram, em geral, merecedores do fim violento que ela acabou lhes dando. Ela tenta acreditar que os matava para proteger-se, mas as mortes –nas quais desovava o corpo, pegava o dinheiro e ficava com o carro das vítimas –vão se somando de tal maneira que, nos finalmentes, Aileen matava pessoas inocentes de fato, que apenas lhe davam carona, alheios ao fato de que era prostituta.
A diretora Patti Jenkins nem tanto enfatiza esse aspecto ‘serial-killer’ da personagem e do filme, como prefere, muito mais, vislumbrar com atenção e minúcia, os caminhos pedregosos que a levaram até lá. Nesse sentido, é realmente primoroso o trabalho de interpretação de Charlize Theron: Ela emprega os maneirismos que definem Aileen como mecanismos de defesa para ela proteger-se da inclemência do mundo, mostrando a protagonista, em sua inaptidão, se converter quase sem notar numa assassina, enquanto se abastece da certeza ilusória de que está trilhando um caminho rumo ao seu sonho.
Como é inevitável num filme com essa proposta, “Monster” abandona o expectador com um sabor amargo na boca e com as imagens de um deprimente registro de seres à margem de uma sociedade obcecada pelo sucesso mas capaz de esmagar com inapelável crueldade os seus fracassados.

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