Tim Burton é um autor cuja percepção de
espetáculo vai na contra-mão do óbvio. Ainda que compreenda o que gere o cinema
comercial –seus filmes mais acessíveis, como “Batman” ou a refilmagem de “O
Planeta dos Macacos”, não se isentam de ação formulaica e formatos narrativos
pré-estabelecidos –suas obras, sobretudo, as mais pessoais, trazem sempre os
elementos nos quais ele enxerga particular fascínio; e que não correspondem a
um paladar considerado convencional.
“Sweeney Todd” é, talvez, a obra na qual isso
se percebe com mais radicalismo.
Baseado numa peça musical de autoria de Stephen
Sondheim, inspirada por sua vez no livro homônimo publicado por Thomas Peckett
Prest, em 1846, o filme é ambientado no Século XIX e inicia-se quando o soturno
ex-barbeiro Benjamin Baker regressa à sua Londres-natal após quinze anos
enclausurado na cadeia.
Baker é um personagem sombrio a quem o astro
Johnny Depp (na sua quinta colaboração com o diretor) confere entusiasmo e
interesse inquestionáveis –como Burton, ele é fascinado pelo bizarro, pelo
tortuoso e pelo estranho, e ambos dedicaram muito de suas carreiras a perseguir
personagens e histórias que refletissem essa fascinação.
Baker, descobrimos, é um alma torturada pelos
rumos trágicos de seu passado: Outrora um barbeiro feliz, casado e apaixonado
com esposa e filha pequena, Baker foi acusado de um crime que não cometeu e
trancafiado numa prisão, apenas para que o autor de todo seu tormento, o
invejoso Juiz Turpin (o saudoso Alan Rickman), pudesse desposar de sua esposa
(Laura Michelle Kelly), seu objeto de desejo desde sempre.
Quinze anos depois, sua esposa está morta
–envenenou-se, dizem –e sua filha, Johanna (Jayne Wisener), agora uma jovem
mulher, é a protegida do Juiz, e a medida que sua formosura se consolida,
torna-se também, ela própria, o novo objeto de desejo dele.
Munido assim de outra identidade –ele agora se
chama Sweeney Todd –o desafortunado protagonista reabre seu salão de barbearia
na miserável Rua Fleet, bem em acima da loja de tortas da Sra. Lovett (Helena
Bonham Carter, esposa de Burton) que amarga a pobreza porque suas tortas não
atraem freguesia.
Sweeney Todd, entretanto, não deseja meramente
voltar a ser um barbeiro: Ele quer encontrar um meio para vingar-se do Juiz Turpin,
e isso toma cada pensamento seu.
Esses desenlaces, explicações e motivações até
ocupam certo espaço na narrativa de Burton, mas ele não lhes dá maior atenção:
Todo seu empenho está dedicado nas engrenagens que transformarão Baker em
Sweeney Todd, ou seja, em um autêntico arquétipo de um filme de terror: Com sua
nova identidade, ele passa a assassinar sistematicamente seus clientes,
cortando-lhes a garganta com suas navalhas afiadas. E a essa metamorfose,
Burton não faz nem mesmo questão de acrescentar realismo –como na peça da qual
se inspira, “Sweeney Todd” é, apesar de suas nada disfarçadas facetas macabras,
um musical (!).
Canção após canção, “Sweeney Todd” conduz assim
o público através dessa miscelânea disfuncional de gêneros: Acompanhamos um
musical de fato –assolado, inclusive, pelo grande problema de muitos musicais,
onde a narrativa praticamente é interrompida durante os números de música para
só seguir em frente depois que eles acabam –com intervenções de uma sub-trama
de romance –o jovem marinheiro Anthony (Jamie Campbell Bower) se apaixona por
Johanna a ponto de querer livrá-la do juiz, seu captor –mas, o que confere
textura ao filme é o sarcasmo rasgado presente nos desdobramentos que cercam
Todd e a Sra. Lovett, seus personagens principais; Numa combinação que coloca
claramente qualquer bom-senso de lado, o barbeiro ganha a cumplicidade de sua
locatária para matar indiscriminadamente enquanto ela usa a carne fresca dos
cadáveres de suas vítimas para rechear suas tortas. Condimento misterioso que
transforma sua loja num súbito sucesso gastronômico.
Há esse viés de divertimento presente em toda
obra de Burton, onde ele estranhamente compartilha um insuspeito prazer em
acompanhar circunstâncias tão tenebrosas. E, com isso, está em jogo também o
elemento mais diferencial de sua filmografia, algo que sempre impede suas obras
de serem filmes de terror com todas as letras: Uma percepção artística, dotada
de humor negro, pantomina, teatralidade e até certa idealização, na qual o
horror, a escuridão e a morte ganham contornos quase lúdicos, como numa
brincadeira infantil.
Burton é assim, a eterna criança que brinca com
seus próprios pesadelos ao invés de nutrir medo deles.
É possível, no entanto, afirmar que, ao
contrário de realizações singulares como “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, “Ed
Wood”, “Os Fantasmas Se Divertem” e sua obra-prima “Edward-Mãos de Tesoura”,
aqui Burton perdeu um pouco a mão: Os elementos violentos e sanguinolentos se
intensificam tanto que é difícil afirmar a qual público “Sweeney Todd” se
dirige –e tal público se torna mais difícil de ser encontrado diante do fato de
que ele é também um musical.
A despeito do poder
avassalador das imagens –a concepção visual é um fator no qual Burton só
melhora –“Sweeney Todd” nunca tenta evitar os rumos profundamente fatalistas em
sua trama que conduzem a um final amargo mesclando ironia, tragédia e
esquartejamento.
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