quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet

Tim Burton é um autor cuja percepção de espetáculo vai na contra-mão do óbvio. Ainda que compreenda o que gere o cinema comercial –seus filmes mais acessíveis, como “Batman” ou a refilmagem de “O Planeta dos Macacos”, não se isentam de ação formulaica e formatos narrativos pré-estabelecidos –suas obras, sobretudo, as mais pessoais, trazem sempre os elementos nos quais ele enxerga particular fascínio; e que não correspondem a um paladar considerado convencional.
“Sweeney Todd” é, talvez, a obra na qual isso se percebe com mais radicalismo.
Baseado numa peça musical de autoria de Stephen Sondheim, inspirada por sua vez no livro homônimo publicado por Thomas Peckett Prest, em 1846, o filme é ambientado no Século XIX e inicia-se quando o soturno ex-barbeiro Benjamin Baker regressa à sua Londres-natal após quinze anos enclausurado na cadeia.
Baker é um personagem sombrio a quem o astro Johnny Depp (na sua quinta colaboração com o diretor) confere entusiasmo e interesse inquestionáveis –como Burton, ele é fascinado pelo bizarro, pelo tortuoso e pelo estranho, e ambos dedicaram muito de suas carreiras a perseguir personagens e histórias que refletissem essa fascinação.
Baker, descobrimos, é um alma torturada pelos rumos trágicos de seu passado: Outrora um barbeiro feliz, casado e apaixonado com esposa e filha pequena, Baker foi acusado de um crime que não cometeu e trancafiado numa prisão, apenas para que o autor de todo seu tormento, o invejoso Juiz Turpin (o saudoso Alan Rickman), pudesse desposar de sua esposa (Laura Michelle Kelly), seu objeto de desejo desde sempre.
Quinze anos depois, sua esposa está morta –envenenou-se, dizem –e sua filha, Johanna (Jayne Wisener), agora uma jovem mulher, é a protegida do Juiz, e a medida que sua formosura se consolida, torna-se também, ela própria, o novo objeto de desejo dele.
Munido assim de outra identidade –ele agora se chama Sweeney Todd –o desafortunado protagonista reabre seu salão de barbearia na miserável Rua Fleet, bem em acima da loja de tortas da Sra. Lovett (Helena Bonham Carter, esposa de Burton) que amarga a pobreza porque suas tortas não atraem freguesia.
Sweeney Todd, entretanto, não deseja meramente voltar a ser um barbeiro: Ele quer encontrar um meio para vingar-se do Juiz Turpin, e isso toma cada pensamento seu.
Esses desenlaces, explicações e motivações até ocupam certo espaço na narrativa de Burton, mas ele não lhes dá maior atenção: Todo seu empenho está dedicado nas engrenagens que transformarão Baker em Sweeney Todd, ou seja, em um autêntico arquétipo de um filme de terror: Com sua nova identidade, ele passa a assassinar sistematicamente seus clientes, cortando-lhes a garganta com suas navalhas afiadas. E a essa metamorfose, Burton não faz nem mesmo questão de acrescentar realismo –como na peça da qual se inspira, “Sweeney Todd” é, apesar de suas nada disfarçadas facetas macabras, um musical (!).
Canção após canção, “Sweeney Todd” conduz assim o público através dessa miscelânea disfuncional de gêneros: Acompanhamos um musical de fato –assolado, inclusive, pelo grande problema de muitos musicais, onde a narrativa praticamente é interrompida durante os números de música para só seguir em frente depois que eles acabam –com intervenções de uma sub-trama de romance –o jovem marinheiro Anthony (Jamie Campbell Bower) se apaixona por Johanna a ponto de querer livrá-la do juiz, seu captor –mas, o que confere textura ao filme é o sarcasmo rasgado presente nos desdobramentos que cercam Todd e a Sra. Lovett, seus personagens principais; Numa combinação que coloca claramente qualquer bom-senso de lado, o barbeiro ganha a cumplicidade de sua locatária para matar indiscriminadamente enquanto ela usa a carne fresca dos cadáveres de suas vítimas para rechear suas tortas. Condimento misterioso que transforma sua loja num súbito sucesso gastronômico.
Há esse viés de divertimento presente em toda obra de Burton, onde ele estranhamente compartilha um insuspeito prazer em acompanhar circunstâncias tão tenebrosas. E, com isso, está em jogo também o elemento mais diferencial de sua filmografia, algo que sempre impede suas obras de serem filmes de terror com todas as letras: Uma percepção artística, dotada de humor negro, pantomina, teatralidade e até certa idealização, na qual o horror, a escuridão e a morte ganham contornos quase lúdicos, como numa brincadeira infantil.
Burton é assim, a eterna criança que brinca com seus próprios pesadelos ao invés de nutrir medo deles.
É possível, no entanto, afirmar que, ao contrário de realizações singulares como “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, “Ed Wood”, “Os Fantasmas Se Divertem” e sua obra-prima “Edward-Mãos de Tesoura”, aqui Burton perdeu um pouco a mão: Os elementos violentos e sanguinolentos se intensificam tanto que é difícil afirmar a qual público “Sweeney Todd” se dirige –e tal público se torna mais difícil de ser encontrado diante do fato de que ele é também um musical.
A despeito do poder avassalador das imagens –a concepção visual é um fator no qual Burton só melhora –“Sweeney Todd” nunca tenta evitar os rumos profundamente fatalistas em sua trama que conduzem a um final amargo mesclando ironia, tragédia e esquartejamento.

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