Tendo o diretor Stanley Kubrick falecido cerca
de cinco dias após completar a montagem da primeira versão deste filme, uma
dúvida paira no ar: Quão mais Kubrick teria protelado a pós-produção se ainda
tivesse mais tempo de vida para fazê-lo, e quão diferente “De Olhos Bem
Fechados” seria daquilo que ele é, se isso tivesse acontecido?
Segunda colaboração do então casal Tom Cruise e
Nicole Kidman –as anteriores foram “Dias de Trovão” e “Um Sonho Distante” –o
último filme de Kubrick, o primeiro dele em doze anos, após “Nascido Para Matar”, é uma obra destoante daquele final da década de 1990 em que foi
lançado; como invariavelmente seria destoante um trabalho partido da percepção
cinematográfico única de Kubrick, em qualquer hora e lugar.
Numa revisão –e passados vinte anos, ele já
recebeu inúmeras –“De Olhos Bem Fechados” deixa para trás a pecha de ‘pior
filme de Kubrick’ que ele recebeu de muitos apressados na época e se constitui
como uma obra notável, carregada de simbolismos tão vastos que tornam até
essencial reassisti-la de tempos em tempos.
Sobre o que ele fala? Diante de muitas
possibilidades, pode se dizer que ele fala sobre sociedades secretas e teorias
conspiratórias, sobre armadilhas da mente e desenganos da realidade, sobre ciúme
e paranóia. Tudo tem início quando o casal Bill e Alice Harford (Tom e Nicole)
vão à uma festa da mansão do amigo Victor Ziegler (Sydney Pollack) –aliás, tudo
tem início mesmo na cena que escancara a nudez estupenda de Nicole Kidman ao
público!
Na festa, os dois flertam com desconhecidos
(ele com duas modelos; ela com um aristocrata húngaro) exercitando uma certa
provocação (e paradoxalmente um incentivo) à circunstância do próprio
casamento.
Neste e em todos os seus outros trabalhos,
Kubrick se mostra, afinal, de um apurado teor antropológico na maneira com que
enxerga o comportamento social do ser humano, definido por contradição e
dissimulação –e isso prossegue no retrato do dia-a-dia de Bill como médico (o
flagrante da nudez de suas pacientes) em contraponto ao dia-a-dia doméstico de
Alice (o flagrante, por sua vez, da nudez de Nicole Kidman novamente).
Ainda na festa, Bill salva uma prostituta de
morrer de overdose no banheiro do próprio Ziegler e reencontra um amigo, Nick
Nightingale (Todd Field, diretor de “Pecados Íntimos”), que tornou-se pianista.
Dias depois, ele e Alice fumam maconha numa noite e, quando o assunto dos
flertes durante a festa veem à baila, ela termina confessando as tentações de
adultérios que experimentou (e às quais quase cedeu) sem que ele percebesse.
A crise matrimonial –encenada de maneira um
tanto artificial por Kubrick –não tem tempo de se concluir; o telefone toca, e
Bill é chamado para outro lugar. Um apartamento onde um importante conhecido
acabou de falecer. Este trecho (e muito do que se segue depois) é um dos que
mais alimenta a teoria de que tudo o que se passa ocorre na cabeça do
protagonista: Lá, ele encontra uma mulher que rejeita o próprio noivo,
professor de matemática, e até ignora o luto pela morte do pai para querer
declarar seu amor a ele –a antítese, talvez, de sua desprendida e cruelmente
pragmática esposa.
Uma fantasia gerada pelo orgulho masculino
ferido? Talvez, e sobre esse prisma, tudo o que ocorre a seguir é uma escalada
do protagonismo de Bill Harford na ânsia de não sentir-se medíocre nem
inferior: A garota de programa (Vinessa Shaw, de “Amantes”) para quem ele é
quase um príncipe encantado; o encontro de ares noir com Nightingale que o leva
a cogitar uma travessura numa festa reclusa e privativa; e a visita de
madrugada a uma loja para comprar uma fantasia, na qual testemunha a ninfeta de
Leelee Sobieski satisfazendo a depravação de dois homens debaixo do nariz do
próprio pai (!).
A sequência da festa de máscaras, logo
convertida em uma orgia, é um pouco mais difícil de explicar; em parte, porque
Kubrick era de uma procedência criativa e intelectual bastante enigmática.
Entre códigos de mais fácil apreensão (um mascarado em forma de corvo sugerindo
o mau agouro) e detalhes mínimos e diversos ali plantados, este é o ponto do
filme a partir do qual sua maior ressalva ganha força: A de que o suspense
levantado em torno de alguma ameaça existencial jamais se justifica, e termina
realmente não levando a lugar nenhum.
Tendo sua travessura como penetra sido descoberta
–e passado uma vergonha, além de um apuro tremendo –Bill passa a perseguir
indícios de que isso possa representar algum perigo à sua vida. Na esteira
dessa suspeita, as fantasias subsequentes encontram, todas, um choque de
realidade: A garota de programa –que não mais aparece –tem, na verdade, AIDS; o
dono da loja de fantasias (vivido por Rade Sherbedgia) foi convencido pelo
ganho financeiro a deixar de lado sua indignação de pai para assumir de bom
grado o papel de cafetão da própria filha.
E atenuando ainda mais essa narrativa algo
contra-producente para com a própria tensão ressurge, já na parte final, o
personagem de Sydney Pollack, a colocar panos quentes (e de efeito redundante)
em muitos dos pontos de partida da premissa.
Da forma como ficou e como se pode interpretar,
“De Olhos Bem Fechados” preserva uma instigante e velada tentativa de Kubrick
em vislumbrar o âmago e o mecanismo das sociedades secretas; muito se especula
que todo o mundo moderno que conhecemos é regido perante o que talvez seja um
grupo de poderosos que manipulam nossa civilização –e o próprio Stanley Kubrick
pode ter tido um vislumbre disso em vários episódios nebulosos e lendários que
o cercam, como a teoria de que teria filmado, sob encomenda do governo dos EUA,
o pouso dos americanos na Lua.
Entretanto, no caráter alegórico que possui,
“De Olhos Bem Fechados” também pode ser de uma conclusão diametralmente oposta:
A de que todas as teorias da conspiração que cercaram Kubrick e seus filmes –a
exemplo da investigação atrapalhada do próprio Bill Harford (durante muito
tempo, Kubrick cogitou, inclusive, fazer deste filme uma comédia) –não eram
absolutamente nada senão invencionices da imaginação.
A dica é dada no final,
pela personagem de Nicole Kidman: “Acho que devemos ser gratos por termos
sobrevivido às nossas próprias aventuras... às reais e às irreais.”
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