sábado, 4 de julho de 2020

Sede de Sangue

Durante a década de 2000, após entregar a brilhante terceira parte de sua “Trilogia da Vingança” com “Lady Vingança”, o diretor Chan-Wook Park se lançou a uma formidável experimentação de gêneros e sub-gêneros, e em algum momento lhe ocorreu fazer um filme de vampiros; o resultado é este desigual, denso e notável “Sede de Sangue”, no qual Park reinventa alguns aspectos da mitologia vampira, obedece alguns paradigmas apenas para evidenciar sua paixão pelo conceito e aproveita realmente para compor infindáveis reflexões de ordem alegórica que sempre foram a grande razão de ser da maioria das histórias e filmes (os melhores, pelo menos) sobre o chupadores de sangue.
Interpretado pelo sempre competente Song Kang-Ho (o formidável protagonista do premiadíssimo “Parasita”), o padre Hyun é o abnegado protagonista de “Sede de Sangue”.
Tão disposto a mergulhar nas renúncias inapeláveis de sua fé ele está que chega ao extremo de oferecer-se como cobaia numa experiência movida por médicos voluntários em busca da cura de uma violenta doença. Como todos os demais que receberam o vírus a fim de servir para os testes que poderiam salvar vidas, o padre Hyun é dado como morto quando os efeitos nocivos começam a destruir seu organismo, entretanto, uma inesperada transfusão de sangue desconhecido opera o que muitos passarão a considerar um milagre: O padre Hyun volta à vida.
Contudo, não se trata de um fenômeno tão santo quanto os crédulos acreditam: Ele foi, na verdade, infectado por sangue vampiro, tornando-se um deles.
Já no ponto de partida de sua premissa, portanto, o filme de Chan-Wook Park, honrando a singularidade criativa de seu realizador, se mostra extraordinário para um filme de vampiro; não apenas seu personagem principal é um prato cheio de contradições a serem exploradas (um padre convertido em vampiro!) como o meio com que isso se dá é todo incomum (nunca ficamos sabendo de quem é o sangue que o torna um vampiro).
Em sua nova existência, o padre Hyun faz o possível para equilibrar a moralidade católica de não afrontar vidas humanas com a necessidade urgente de se sustentar pelo sangue –quando ele não o faz, os efeitos da peste voltam com força total! –assim, ele busca por suicidas, solidários doadores de sangue e, em especial, a contribuição de um paciente em coma num hospital de caridade, cujo sangue ele suga todas as noites.
Com o tempo, o padre encontra uma família que conheceu durante a juventude que consiste da mãe, do filho e da filha adotiva. A dinâmica entre eles –inusitada como compete a um filme sul-coreano –é a seguinte: A mãe (a veterana Kim Hae-Sook) é perdulária e condescendente ao extremo com o filho mimado e imaturo, Kang-Woo (Shin Ha-Kyun, de “Mr. Vingança”), que está doente de câncer; já a filha adotiva Tae-Ju (a belíssima Kim Ok-Bin, de “A Vilã”) ao crescer, tornou-se esposa do rapaz, apenas para dar continuidade ao seu ingrato papel de capacho e empregada da família que a adotou.
O padre Hyun, passando a conviver com eles, passa também a nutrir certa empatia pelo sofrimento de Tae-Ju, no entanto, a vida de vampiro e as constantes e inevitáveis concessões ao desejo –inerentes à existência de um vampiro –o fazem suscetível à atração sexual que passa a nutrir por ela.
Em algum momento, Tae-Ju descobre que Hyun é um vampiro, tornando-se amante dele mesmo assim –e aqui testemunhamos a habilidade com que Chan Wook Park constrói ousadas cenas de sexo, integradas de forma crucial à narrativa, nunca gratuitas, mas também longe de serem leves, amenas ou veladas; talento que ele extrapolou no genial “A Criada”.
Durante um tempo considerável de sua duração –que alguns expectadores mais afoitos vão considerar demasiado –o diretor dedica-se a observar com evidente satisfação, os percalços dessa convivência do padre Hyun –que depois de um tempo até deixa de ser padre –com Tae-Ju e seus parentes, inicialmente mantendo um caso secreto, mais logo armando o assassinato de Kang-Woo, e o domínio completo da circunstância doméstica pelos amantes depois que a mãe se torna catatônica e vegetativa; e durante todo esse tempo, Tae-Ju não para de infernizar Hyun para que ele a transforme também numa vampira.
O quê demora um bom tempo para acontecer, mas acontece: Todavia, Tae-Ju se revela uma criatura selvagem, sanguinária e infinitamente mais desdenhosa para com as vidas humanas de suas vítimas do que Hyun jamais foi.
É, acima de tudo, tal divergência que leva os dois em direção à um trágico desfecho.
Detratores de limitada percepção irão se apressar (como de fato se apressaram) em dizer que “Sede de Sangue” não é tão brilhante nem tão inovador quanto os exemplares da “Trilogia da Vingança” de Chan-Wook Park, e nem foi esse, deveras, seu objetivo: Ao abraçar o sub-gênero dos vampiros, e dizer sim a todos os clichês que definem esses seres mitológicos, a intenção do diretor foi versar, na medida do possível, sobre os tópicos da fé cristã em oposição ao malefício natural de descobrir-se um ser macabro e sobre as aglutinações imprevisíveis a envolver a necessidade de sangue e a embriaguez do sexo.
Amparando sua incrível história no manejo inteligente e reflexivo desses conceitos, “Sede de Sangue” é um dos mais astutos e perpicazes filmes de vampiros das últimas décadas.

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