Durante a década de 2000, após entregar a
brilhante terceira parte de sua “Trilogia da Vingança” com “Lady Vingança”, o
diretor Chan-Wook Park se lançou a uma formidável experimentação de gêneros e
sub-gêneros, e em algum momento lhe ocorreu fazer um filme de vampiros; o
resultado é este desigual, denso e notável “Sede de Sangue”, no qual Park
reinventa alguns aspectos da mitologia vampira, obedece alguns paradigmas
apenas para evidenciar sua paixão pelo conceito e aproveita realmente para compor
infindáveis reflexões de ordem alegórica que sempre foram a grande razão de ser
da maioria das histórias e filmes (os melhores, pelo menos) sobre o chupadores
de sangue.
Interpretado pelo sempre competente Song
Kang-Ho (o formidável protagonista do premiadíssimo “Parasita”), o padre Hyun é
o abnegado protagonista de “Sede de Sangue”.
Tão disposto a mergulhar nas renúncias
inapeláveis de sua fé ele está que chega ao extremo de oferecer-se como cobaia
numa experiência movida por médicos voluntários em busca da cura de uma
violenta doença. Como todos os demais que receberam o vírus a fim de servir
para os testes que poderiam salvar vidas, o padre Hyun é dado como morto quando
os efeitos nocivos começam a destruir seu organismo, entretanto, uma inesperada
transfusão de sangue desconhecido opera o que muitos passarão a considerar um
milagre: O padre Hyun volta à vida.
Contudo, não se trata de um fenômeno tão santo
quanto os crédulos acreditam: Ele foi, na verdade, infectado por sangue
vampiro, tornando-se um deles.
Já no ponto de partida de sua premissa,
portanto, o filme de Chan-Wook Park, honrando a singularidade criativa de seu
realizador, se mostra extraordinário para um filme de vampiro; não apenas seu
personagem principal é um prato cheio de contradições a serem exploradas (um
padre convertido em vampiro!) como o meio com que isso se dá é todo incomum
(nunca ficamos sabendo de quem é o sangue que o torna um vampiro).
Em sua nova existência, o padre Hyun faz o
possível para equilibrar a moralidade católica de não afrontar vidas humanas
com a necessidade urgente de se sustentar pelo sangue –quando ele não o faz, os
efeitos da peste voltam com força total! –assim, ele busca por suicidas,
solidários doadores de sangue e, em especial, a contribuição de um paciente em
coma num hospital de caridade, cujo sangue ele suga todas as noites.
Com o tempo, o padre encontra uma família que
conheceu durante a juventude que consiste da mãe, do filho e da filha adotiva.
A dinâmica entre eles –inusitada como compete a um filme sul-coreano –é a
seguinte: A mãe (a veterana Kim Hae-Sook) é perdulária e condescendente ao
extremo com o filho mimado e imaturo, Kang-Woo (Shin Ha-Kyun, de “Mr. Vingança”), que está doente de câncer; já a filha adotiva Tae-Ju (a belíssima
Kim Ok-Bin, de “A Vilã”) ao crescer, tornou-se esposa do rapaz, apenas para dar
continuidade ao seu ingrato papel de capacho e empregada da família que a
adotou.
O padre Hyun, passando a conviver com eles,
passa também a nutrir certa empatia pelo sofrimento de Tae-Ju, no entanto, a
vida de vampiro e as constantes e inevitáveis concessões ao desejo –inerentes à
existência de um vampiro –o fazem suscetível à atração sexual que passa a
nutrir por ela.
Em algum momento, Tae-Ju descobre que Hyun é um
vampiro, tornando-se amante dele mesmo assim –e aqui testemunhamos a habilidade
com que Chan Wook Park constrói ousadas cenas de sexo, integradas de forma
crucial à narrativa, nunca gratuitas, mas também longe de serem leves, amenas
ou veladas; talento que ele extrapolou no genial “A Criada”.
Durante um tempo considerável de sua duração
–que alguns expectadores mais afoitos vão considerar demasiado –o diretor
dedica-se a observar com evidente satisfação, os percalços dessa convivência do
padre Hyun –que depois de um tempo até deixa de ser padre –com Tae-Ju e seus
parentes, inicialmente mantendo um caso secreto, mais logo armando o
assassinato de Kang-Woo, e o domínio completo da circunstância doméstica pelos
amantes depois que a mãe se torna catatônica e vegetativa; e durante todo esse
tempo, Tae-Ju não para de infernizar Hyun para que ele a transforme também numa
vampira.
O quê demora um bom tempo para acontecer, mas
acontece: Todavia, Tae-Ju se revela uma criatura selvagem, sanguinária e
infinitamente mais desdenhosa para com as vidas humanas de suas vítimas do que
Hyun jamais foi.
É, acima de tudo, tal divergência que leva os
dois em direção à um trágico desfecho.
Detratores de limitada percepção irão se
apressar (como de fato se apressaram) em dizer que “Sede de Sangue” não é tão
brilhante nem tão inovador quanto os exemplares da “Trilogia da Vingança” de
Chan-Wook Park, e nem foi esse, deveras, seu objetivo: Ao abraçar o sub-gênero
dos vampiros, e dizer sim a todos os clichês que definem esses seres
mitológicos, a intenção do diretor foi versar, na medida do possível, sobre os
tópicos da fé cristã em oposição ao malefício natural de descobrir-se um ser
macabro e sobre as aglutinações imprevisíveis a envolver a necessidade de
sangue e a embriaguez do sexo.
Amparando sua incrível
história no manejo inteligente e reflexivo desses conceitos, “Sede de Sangue” é
um dos mais astutos e perpicazes filmes de vampiros das últimas décadas.
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