sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A Professora de Piano


 Listado como número 85 na lista dos 100 melhores filmes da década de 2000 feita pelo jornal “The Times”, “A Professora de Piano” é uma obra na qual o austríaco Michael Haneke investiga os desdobramentos do amor e da relação a dois em um contexto cheio de perversidade e frieza –à sua maneira, sua realização é um título que soma novos significados às inquietações muito pessoais que ele dedicou sua filmografia inteira a discorrer.

Do alto de sua inquestionável excelência, Isabelle Hupert é Erika, um professora de aulas de piano, em tudo e por tudo, rígida com todos à sua volta.

Entretanto, tal rigidez é mais do que apenas compostura, como tratam de mostrar pequenos indícios ainda no começo, como a abruptamente violenta relação dela com a mãe (Annie Girardot), suas inesperadas e improváveis visitas à uma cabine de sex-shop para assistir filmes pornográficos (e, na ocasião, cheirar lenços ‘usados’ por clientes pouco antes!) e alguns instantes, bem ao gosto de Haneke, quando Erika inflige, inclusive em si mesma, ferimentos de ordem sadomasoquista.

Erika é um perigo ambulante, disfarçado sob a superfície de uma respeitável doutora em música: Há uma satisfação captada em pequenos detalhes de sua expressão, quando consegue infligir algum dano realmente doloroso, ou quando suas atitudes podam a felicidade de alguém.

Durante os disputados ensaios para um vindouro recital de Schubert, Erika conhece o jovem Walter Klemmer (Benoît Magimel, de “Uma Garota Dividida Em Dois”), que não poupa esforços para chamar a atenção da bela professora; mas, para ele e para todos os outros mais, Erika é um poço sem fundo de rancor e amargura travestido de excessivo profissionalismo.

Leva tempo para Walter começar a romper essa ardilosa armadura social e descobrir quem ela é de fato: Aos poucos, Erika esboça suas intenções de se tornar o agente passivo numa relação de dominação –ela deseja ser chicoteada, estapeada e agredida –e essa reação promove uma mudança em Walter; de apaixonado repudiado, ele se torna o agressor, enquanto Erika passa a submeter-se a sua violência.

Haneke promove uma inversão de papéis abusivos, guiada pela justificativa do amor, mas que ilustra inúmeras fissuras defeituosas na relação homem/mulher.

Como outros de seus trabalhos naquele período –tal qual as duas versões de “Violência Gratuita” e o antológico “Caché” –“A Professora de Piano” parece sinalizar um molde cinematográfico com expedientes bem sólidos aos quais o subconsciente do expectador médio haverá de se agarrar –aqui, o romance, a história de amor –e, a partir dessas pressuposições básicas, Haneke desconstrói os anseios e as expectativas do expectador negando-lhe um desfecho fácil e convencional que traga catarse e oferecendo, em vez disso, uma verdadeira paulada em formado de experiência cinematográfica.

Diferente de outros realizadores europeus (como Lars VonTrier, Andrzej Zulawski ou Gaspar Noé), Haneke não recorre direta e imediatamente à choques visuais para desconsertar o público: Ele o faz triturando, pouco a pouco, as defesas de seu psicológico. É nessa convicta escolha estética que “A Professora de Piano” posiciona sua reflexão ao lado de tantos outros grandes trabalhos, nos quais Haneke questiona as máscaras sociais, a idealização sentimental dos relacionamentos humanos, a gênese e os propósitos do próprio cinema.

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