segunda-feira, 5 de julho de 2021

Vidas Ao Vento


 Os artistas passam pelo mundo com fugacidade. Todos nós passamos. Mas, a arte, a sua grande contribuição ao mundo, tem sim o poder de transformá-lo, de marcá-lo para todo o sempre. É sobre isso, em grande medida, que fala o último trabalho do genial Hayao Miyazaki, aquele com o qual ele finalmente aposentou-se deixando na animação japonesa em geral, e no Studo Ghibli em particular, uma lacuna que até então não foi preenchida.

Num reflexo que Miyazaki enxerga de si mesmo, o protagonista de “Vidas Ao Vento” é Jiro Horikoshi, jovem cuja paixão, desde tenra idade, são as máquinas voadoras. Míope de nascença, Horikoshi não pode ser piloto, sendo assim, ele passa a sonhar em ser designer de aviões.

É o Japão do princípio do Século XX, e a trajetória desse personagem passa delicadamente por acontecimentos marcantes da história japonesa, como o Grande Terremoto de Kanto em 1923, durante o qual Horikoshi –que na época viajava de trem rumo à universidade de engenharia –conhece a mulher de sua vida, Nanoko Satomi; ou a Segunda Guerra Mundial, prevista em pequenos detalhes pontuais da narrativa, como quando Horikoshi (que em alguns momentos lembra, talvez não por acaso, o nosso Santos Dummont!) e outros colegas engenheiros são despachados para as fábricas na Alemanha, numa espécie de política de troca tecnológica –e mesmo ali, a animosidade e a intolerância dos alemães se faz flagrante.

Miyazaki alterna os momentos da vida de Horikoshi –sobretudo a vida pessoal e seu romance com Nanoko, às voltas com a tuberculose dela, e a dedicada vida profissional –em segmentos de orientação adulta que, em princípio nada parecem remeter a um projeto de animação, acrescidos de devaneios, onde enxerga seu grande ídolo, o designer italiano Gianni Caproni, e com ele troca confidências.

Nesse sentido, no de emular uma animação numa premissa toda realista, “Vidas Ao Vento” remete muito ao arrebatador “O Túmulo dos Vagalumes”, de Izao Takahata, na maneira com que o formato animado permite à trama despir-se de segundas intenções, e na amplificação lúdica que proporciona ao drama.

Tecnicamente, Miyazaki esmerou-se para fazer desta uma despedida digna e marcante: As sequências animadas oscilam em um elevado nível de sensibilidade e primor pictório, e as cenas –em especial, aquelas que contam com as máquinas voadoras –dispõem de um diferenciado desenho de som no qual os efeitos sonoros são feitas com a boca (!), a lembrar a espetacular trilha sonora do cultuado “Akira”.

Ao fim de “Vidas Ao Vento” –cujo retrato um tanto elíptico e poético dos acontecimentos pode não suprir adequadamente os interessados pela vida e obra de Jiro Horikoshi –Miyazaki tece uma singela reflexão sobre o amargo poder transfigurador que o mundo exerce sobre certas criações (o avião, de prodigiosa aerodinâmica, que Horikoshi projetou foi o Mitsubishi A6M ‘Zero’, modelo usado pelos kamikase durante a Segunda Guerra), mas não deixa de oferecer ao público uma belíssima amostra da arte em sua concepção e do artista em seu exercício.

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