quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A Morte Lhe Cai Bem


 Dos inúmeros apadrinhados de Steven Spielberg, cujos filmes ele produziu na década de 1980, certamente o melhor deles foi Robert Zemeckis. E, tal e qual seu mentor, Zemeckis sempre soube ousar acrescentando doses inusitadas de dramaticidade, humor negro ou até suspense, nas obras abertamente festivas e comerciais que realizava.

Mais do que um trabalho equilibrado e completo, “A Morte Lhe Cai Bem” representa um esforço em agregar gêneros distintos numa filmografia que, naquele 1992 de então, começava a ficar restrita a um tipo de gênero aos ohos do público: Zemeckis havia feito a “Trilogia De Volta Para O Futuro” e o sucesso “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, praticamente aventuras (ainda que brilhantes) voltadas ao público infanto-juvenil. Vale lembrar que o próprio Spielberg, na mesma época, esforçava-se para livrar dessa mesma pecha, iniciando as filmagens de seu “A Lista de Schindler”.

Causando certo desconcerto ao público já na escolha de seus protagonistas, “A Morte Lhe Cai Bem” une três astros vindos de diferentes vibrações cinematográficas: A consagrada, versátil e magnífica Meryl Streep, o carismático e competente Bruce Willis (normalmente atrelado à filmes de ação) e a divertida e ocasionalmente histriônica Goldie Hawn (normalmente atrelada, por sua vez, à comédias românticas). E “A Morte Lhe Cai Bem” não é um filme de ação, não é uma comédia romântica, e certamente, também não nenhum projeto sério, no qual Meryl Streep costumava ser vista.

Meryl vive Madeline Ashton, vaidosa estrela hollywoodiana pouco a pouco sentindo os primeiros e indesejados efeitos da passagem do tempo (a lembrar um pouco a Norma Desmond de “Crepúsculo dos Deuses”). Casada com Ernest Menville (personagem de Willis), um renomado cirurgião plástico, Madeline vê os avanços, sobre seu cobiçado marido, de Helen Sharp (personagem de Goldie), sua rival da juventude, cujo retorno, de pronto, surpreende à Madeline e à todos: Helen não envelheceu um único dia desde a última vez que se viram. E sua juventude, sua pele impecável e seu corpo todo no lugar chama a atenção de Ernest ressentido não só das futilidades de Madeline como também do visível avanço do tempo sobre sua aparência.

Numa noite em que se descobre particularmente inconsolável, Madeline recebe a dica de uma misteriosa pessoa capaz de ajudá-la, e assim, encontra a feiticeira interpretada por Isabella Rosselini (tão linda e sexy que é de se lamentar que não tenha maior tempo de cena). Em linhas gerais, ela conta à Madeline sua longa trajetória na qual ajudou, no último século (!), algumas atrizes à continuar brilhando na ribalta com sua juventude preservada.

Madeline topa o acordo na mesma hora e, ao provar um elixir, tem sua beleza magicamente restaurada; Não sem uma advertência: “Cuide bem de seu corpo. Você continuará com ele por um bom tempo!”

Na comédia impiedosa de humor negro que realiza, é óbvio que não será isso que o diretor Zemeckis deixará acontecer. Já mancomunado com Helen para livrar-se de Madeline, o Dr. Menville tenta matá-la jogando-a da escada, e eis a grande surpresa: Madeline não pode mais morrer!

Mesmo com seu pescoço quebrado ostentando uma hedionda fratura (a maquiagem é prodigiosa, e os efeitos visuais ganharam o Oscar 1993), Madeline permanece viva (!), o elixir, ao que tudo indica, lhe deu vida eterna, a despeito das intempéries sofridas por seu corpo.

Ao tentar retribuir o ‘favor’ à Helen, dando-lhe um tiro de espingarda no peito (humor negro, lembre-se...),Madeline tem outra revelação: Helen também fez o tal pacto com a feiticeira (o que explica seu retorno jovem e impecável) e, como Madeline, não pode ser morta; a despeito do buraco assombroso que o tiro de espingarda lhe deu (!). Agora, Ernest deve usar de seus conhecimentos cirúrgicos para ajudar Madeline e Helen, lhes preservando a pele, impedindo seu corpo de revelar os efeitos da deterioração, e disfarçando os indícios de suas chagas mortais. Em suma, ele é, para sempre, uma espécie de escravo das duas.

Conduzindo este conto sobre vaidades levadas aos extremos improváveis do sobrenatural, Zemeckis extrai muito de sua reflexão, atmosfera, ritmo e lógica, da pertinente referência à cultuada série “Além da Imaginação” –e tão influente essa série é, dentro da sua orientação criativa, que Robert Zemeckis (ao lado do próprio Steven Spielberg) capitaneou um dos episódios de outra série, “Histórias Maravilhosas”, construída exatamente nos moldes daquela.

Usando e abusando de efeitos visuais na manutenção de seu humor –a visão de Meryl, com seu pescoço desconjuntado, e de Goldie, com uma cratera em seu peito, são incríveis! –“A Morte Lhe Cai Bem” deliberadamente recorre a ecos de Alfred Hitchcock para levar sua premissa divertidamente ácida e despreocupada às últimas consequências. Como cinema, ele não é nada demais (e essa despretensão parece estar em seus objetivos), contudo, certamente ele consegue entreter com sua inusitada trama sobre a imortalidade posta à prova por pura imaturidade de suas protagonistas, e com sua reflexão sobre as imprevistas consequências da combinação catastrófica entre vida eterna e futilidade, também ela, eterna!

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