sexta-feira, 17 de junho de 2022

Um Homem Bom


 Mais do que as histórias sobre a Segunda Guerra Mundial que retratam o Holocausto em si, há também uma vertente que passou a explorar as atrocidades do nazismo de um ponto de vista interno; no geral, alemães que testemunharam a gênese de todo o mal e se viram oprimidos pela ascensão de um ódio inconcebível. Dentro das variações curiosas desse, digamos, subgênero podemos destacar o filme autenticamente alemão “O Barco-Inferno No Mar”, o fenomenal “Cabaret”, o norte-americano “Os Últimos Rebeldes”, as duas versões de “Operação Valkiria”, o recente (e ótimo) “Jojo Rabbit” e muitos outros –embora tudo talvez tenha começado com “O Homem Do Castelo Alto”, de autoria do escritor Phillip K. Dick.

A obra dirigida pelo brasileiro Vicente Amorim busca se inserir entre esses exemplares.

Nele, Viggo Mortensen interpreta John Halder, alemão que, em meados da década de 1930, é um mero professor universitário com tímidas aspirações literárias, e uma vida doméstica cheia de atropelos, ainda que normal: A esposa, tuberculosa, vive doente, deixando o cuidado da casa e dos filhos para ele. A mãe (Gemma Jones, de “Razão & Sensibilidade”) está à beira da senilidade, e o sogro lhe apurrinha para ingressar num certo partido socialista,

As mudanças na vida de Halder chegam lentamente. Ele conhece e se apaixona por uma de suas alunas, Anne (a maravilhosa Jodie Whittaker, da série “Doctor Who” e do filme “Vênus”), por quem, mais tarde, abandona a família e vem a desposar a medida que sua mudança de status social exige uma esposa mais adequada. É consequente, portanto, que a reviravolta mais radical experimentada pelo protagonista diga respeito à sua profissão: Autor de um livro fictício sobre os impulsos humanos no ato da eutanásia cujo argumento cai nas graças do próprio Hitler em pessoa, Halder é chamado à Alta Cúpula Nazista como uma espécie de adereço intelectual ao séquito do Fuhrer, o que não deixa de lhe proporcionar toda influência e prosperidade material de um oficial nazista.

Entretanto, como na obra-prima “Mephisto”, de István Szabó, o personagem principal guarda uma decência interna que o faz se enojar com os rumos nacionalistas de seu país. Diferente daquela produção, contudo, o filme de Amorim nem sempre trasmite tal circunstância com a riqueza de nuances que ela poderia ter.

Há, por exemplo, a questão da amizade entre Halder e o psicanalista judeu Gluckstein (Jason Isaacs), a relação mais explorada em todo o roteiro, na qual o protagonista testemunha o cerco se fechar ao redor do amigo, lutanto por vezes com seus próprios fantasmas, para poder mantê-lo em segurança. Não faltaram exemplos, no passado, em que tais enredos foram explorados com primor para deles extrair valiosas e pertinentes lições morais sobre os perigos da omissão, o valor da vida e a importância inegociável da liberdade, mas, a direção de Amorim parece sentir-se demasiado oprimida em meio à uma produção de escopo tão nitidamente maior do que aquelas com as quais trabalhou em terras brasileiras (que inclue o drama “O Caminho das Nuvens”).

Seu registro da vida de Halder em família, por exemplo –trecho que ocupa o primeiro terço do filme –é prosaico, banal e sem profundidade, perdendo a chance de fundamentar o interesse do público pelo personagem e de nele criar a necessária empatia. O próprio Viggo Mortensen, notoriamente um grande ator, oferece uma atuação inquieta, hesitante e perplexa, fruto da segurança que um diretor mais firme passaria ao intérprete. Todos esses pequenos lapsos se somam conforme o filme avança, transformando-o numa realização pouco marcante; sem a devida conexão com o protagonista assim estabelecida, o expectador pouco se importa com os rumos de sua história, com o esfacelamento de sua família, a descoberta de um matrimônio cada vez mais vazio ou a dissolução do único vínculo genuíno que possuía, a amizade com Gluckstein.

Nesse sentido, mesmo seus mais notáveis acertos –a interessante manobra narrativa na qual a mesma senilidade herdada da mãe começa a acometer Halder através de súbitas inserções musicais que surgem em meio às cenas –ficam à sombra de seus equívocos –o fôlego limitado para mostrar o quão lamentável é, para o espírito humano, esteja ele do lado que estiver, a circunstância da guerra.

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