quarta-feira, 26 de julho de 2023

Barbie


 Se haviam ressalvas que os cinéfilos do mundo inteiro alimentavam em relação à realização de um filme estrelado pela famosa boneca Barbie, elas foram todas dissipadas quando foi anunciada, como diretora e roteirista do projeto, a pra lá de talentosa Greta Gerwig. Em suas mãos, “Barbie” é, sim, sobre a boneca mais famosa do mundo (e traz, em tal papel, uma intérprete que não poderia ser mais perfeita, a fantástica australiana Margot Robbie), mas, é também sobre todas as consequências e ramificações, positivas e negativas, acarretadas por esse legado. É sobre a eterna dicotomia entre o amor idealizado e o amor como ele é. E é, afinal de contas, sobre nós, seres humanos, e nossa dificuldade de conciliar o que é diferente.

Numa referência à “2001-Uma Odisséia No Espaço” –que já denota os altíssimos padrões assumidos pelo filme de Greta Gerwig –somos introduzidos à história da boneca Barbie cujo surgimento mudou o modo de brincar de meninas do mundo todo. Mais que isso, mudou sua mentalidade: Outrora se restringindo ao papel de mãe de suas bonecas, as meninas tiveram em Barbie um exemplo de independência e empoderamento a ser seguido. Ou pelo menos, é essa impressão que passou a reger o mundo alternativo e ligeiramente alienado conhecido como Barbieland, no qual todas as variações até hoje criadas da boneca (bem como de seu namorado, Ken) existem de verdade. Barbieland é um mundo que segue as orientações conceituais do próprio brinquedo: As inúmeras Barbies não desfazem o formato empinado de seus pés, vivem em casas transparentes e cor-de-rosas, bebem em copos vazios e vão à praias onde o mar não lhes molha. É um mundo idealizado como numa brincadeira de criança –e a brilhante direção de arte, aliada aos audazes figurinos, captura essa ideia com propriedade imediatamente notável. Tal como na aparência, também há uma espécie de alienação nos sentimentos: Ken (Ryan Gosling, extraordinário) é salva-vidas, ainda que sua ideia da ocupação seja ficar impávido e supino na areia sem jamais pisar no mar, e seu namoro com a Barbie de Margot Robbie –pois todas as habitantes de Barbieland se chamam Barbie, assim como todos se chamam Ken, salvo a exceção do deslocado Alan (Michael Cera) –jamais sai do campo da teoria. Lá, todas as noites são festivas e todos os dias são os melhores de toda vida: Barbieland e seus nada realistas habitantes refletem, portanto, a maneira com que são brincados por todas as crianças do Mundo Real.

Contudo, em algum momento, algo inesperado começa a acontecer. Barbie é assolada por súbitos pensamentos a respeito da morte e, na sequência deles, surgem celulites e seus pés começam a assentar naturalmente ao chão (!). A resposta, vinda da espirituosa Barbie Estranha (Kate McKinnon), é até simples: Em algum lugar do Mundo Real, uma menina está brincando com a Barbie dessa forma assim, diferente, causando uma anomalia que interfere em Barbieland. À sua maneira descolada, Barbie resolve partir numa viagem rumo ao Mundo Real e tentar resolver as coisas com essa menina aparentemente desiludida –levando sem querer, Ken como clandestino.

É na retratação do Mundo Real, em oposição ao imaginário lúdico de Barbieland, que o filme de Greta Gerwig poderia encontrar seu ponto fraco, mas termina revelando sua mais audaciosa inspiração, aquela que faz de “Barbie” um filme que definitivamente deixa de ser infantil para abraçar reflexões que pouco a pouco vão ganhando profundidade, complexidade e emoção –e até mesmo um pouquinho de metalinguagem! Ao chegar em Los Angeles, Barbie encontra Sasha (Ariana Greenblatt, a pequena Gamorra de “Vingadores-Guerra Infinita”) e descobre que os valores outrora representados por ela como boneca, não foram tão salutares às gerações de meninas como ela acreditava. Ken, por outro lado, toma conhecimento das ideias norte-americanas sobre o Patriarcado e por meio delas reavalia sua relação de quase submissão sentimental com Barbie, bem como de seus pares –afinal, o personagem Ken, sempre viveu e existiu em função do protagonismo de Barbie.

Perseguida pelos executivos da Mattel (!) –liderados pelo sempre hilário Will Ferrell –que a querem de volta à Barbieland sem provocar transtornos no Mundo Real, Barbie conhece Gloria (America Ferrera, de “Quatro Amigas e Um Jeans Viajante”), mãe de Sasha, a pessoa que, com sua nostalgia provocada pelo crescimento da filha causou as mudanças lúgubres na protagonista. Todas regressam para Barbieland, para encontrar o mundo idealizado e perfeito de Barbie agora virado de pernas pro ar: Não mais disposto a se restringir ao redundante papel de namorado, Ken instaurou as ideias do Patriarcado em Barbieland, e agora, os Ken reinam absolutos como ‘machos dominantes’ enquanto as demais Barbies sofreram uma espécie de lavagem cerebral assumindo o papel de namoradinhas ostensivas.

É ironicamente o conhecimento do papel desafiador da mulher no Mundo Real trazido por Gloria que irá devolver as coisas aos seus devidos lugares. Ou ao menos, tentar.

Crianças pequenas, seduzidas pelo visual pueril, exuberante e predominantemente rosa, do filme de Greta Gerwig haverão de se surpreender e até se ressentir da gradual concepção adulta que o filme vai adquirindo a medida que avança –sem jamais deixar de ser divertido e apropriadamente caricatural (e de contar com diversas piadas de duplo sentido), o roteiro de “Barbie” (escrito à quatro mãos por Greta e seu marido Noah Baumbach) aborda temas como o empoderamento feminino, a emancipação da mulher, as ramificações tóxicas do machismo e do feminismo e o difícil equilíbrio entre valores morais e sentimentos arrebatadores para se revelar um filme profundo, carregado de ideias inesperadas justapostas de forma clara, corajosa e inteligente. No admirável arco narrativo que se constrói do início ao fim, “Barbie” engata sucessivamente marchas imprevistas de tensão, revolução e dramaticidade, nessa mesma ordem, que levam o público à novas impressões, culminando numa cena poderosamente emocionante –quando Barbie, assolada por todas as mudanças provocadas por e sobre ela –encontra o fantasma de Ruth Handler (Rhea Perlman), sua criadora, e decide reconhecer e aceitar, por fim, sua própria humanidade.

Por tudo que é, por suas diversas qualidades e suas instigantes ideias, por seus vastos acertos e suas imprevistas emoções não se deve subestimar este grande filme de Greta Gerwig.

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