Se haviam ressalvas que os cinéfilos do mundo inteiro alimentavam em relação à realização de um filme estrelado pela famosa boneca Barbie, elas foram todas dissipadas quando foi anunciada, como diretora e roteirista do projeto, a pra lá de talentosa Greta Gerwig. Em suas mãos, “Barbie” é, sim, sobre a boneca mais famosa do mundo (e traz, em tal papel, uma intérprete que não poderia ser mais perfeita, a fantástica australiana Margot Robbie), mas, é também sobre todas as consequências e ramificações, positivas e negativas, acarretadas por esse legado. É sobre a eterna dicotomia entre o amor idealizado e o amor como ele é. E é, afinal de contas, sobre nós, seres humanos, e nossa dificuldade de conciliar o que é diferente.
Numa referência à “2001-Uma Odisséia No Espaço”
–que já denota os altíssimos padrões assumidos pelo filme de Greta Gerwig
–somos introduzidos à história da boneca Barbie cujo surgimento mudou o modo de
brincar de meninas do mundo todo. Mais que isso, mudou sua mentalidade: Outrora
se restringindo ao papel de mãe de suas bonecas, as meninas tiveram em Barbie
um exemplo de independência e empoderamento a ser seguido. Ou pelo menos, é
essa impressão que passou a reger o mundo alternativo e ligeiramente alienado
conhecido como Barbieland, no qual todas as variações até hoje criadas da
boneca (bem como de seu namorado, Ken) existem de verdade. Barbieland é um
mundo que segue as orientações conceituais do próprio brinquedo: As inúmeras
Barbies não desfazem o formato empinado de seus pés, vivem em casas
transparentes e cor-de-rosas, bebem em copos vazios e vão à praias onde o mar
não lhes molha. É um mundo idealizado como numa brincadeira de criança –e a
brilhante direção de arte, aliada aos audazes figurinos, captura essa ideia com
propriedade imediatamente notável. Tal como na aparência, também há uma espécie
de alienação nos sentimentos: Ken (Ryan Gosling, extraordinário) é salva-vidas,
ainda que sua ideia da ocupação seja ficar impávido e supino na areia sem
jamais pisar no mar, e seu namoro com a Barbie de Margot Robbie –pois todas as
habitantes de Barbieland se chamam Barbie, assim como todos se chamam Ken,
salvo a exceção do deslocado Alan (Michael Cera) –jamais sai do campo da
teoria. Lá, todas as noites são festivas e todos os dias são os melhores de
toda vida: Barbieland e seus nada realistas habitantes refletem, portanto, a
maneira com que são brincados por todas as crianças do Mundo Real.
Contudo, em algum momento, algo inesperado
começa a acontecer. Barbie é assolada por súbitos pensamentos a respeito da
morte e, na sequência deles, surgem celulites e seus pés começam a assentar
naturalmente ao chão (!). A resposta, vinda da espirituosa Barbie Estranha
(Kate McKinnon), é até simples: Em algum lugar do Mundo Real, uma menina está
brincando com a Barbie dessa forma assim, diferente, causando uma anomalia que
interfere em Barbieland. À sua maneira descolada, Barbie resolve partir numa
viagem rumo ao Mundo Real e tentar resolver as coisas com essa menina
aparentemente desiludida –levando sem querer, Ken como clandestino.
É na retratação do Mundo Real, em oposição ao
imaginário lúdico de Barbieland, que o filme de Greta Gerwig poderia encontrar
seu ponto fraco, mas termina revelando sua mais audaciosa inspiração, aquela
que faz de “Barbie” um filme que definitivamente deixa de ser infantil para
abraçar reflexões que pouco a pouco vão ganhando profundidade, complexidade e
emoção –e até mesmo um pouquinho de metalinguagem! Ao chegar em Los Angeles,
Barbie encontra Sasha (Ariana Greenblatt, a pequena Gamorra de
“Vingadores-Guerra Infinita”) e descobre que os valores outrora representados
por ela como boneca, não foram tão salutares às gerações de meninas como ela
acreditava. Ken, por outro lado, toma conhecimento das ideias norte-americanas
sobre o Patriarcado e por meio delas reavalia sua relação de quase submissão
sentimental com Barbie, bem como de seus pares –afinal, o personagem Ken,
sempre viveu e existiu em função do protagonismo de Barbie.
Perseguida pelos executivos da Mattel (!)
–liderados pelo sempre hilário Will Ferrell –que a querem de volta à Barbieland
sem provocar transtornos no Mundo Real, Barbie conhece Gloria (America Ferrera,
de “Quatro Amigas e Um Jeans Viajante”), mãe de Sasha, a pessoa que, com sua
nostalgia provocada pelo crescimento da filha causou as mudanças lúgubres na
protagonista. Todas regressam para Barbieland, para encontrar o mundo
idealizado e perfeito de Barbie agora virado de pernas pro ar: Não mais
disposto a se restringir ao redundante papel de namorado, Ken instaurou as
ideias do Patriarcado em Barbieland, e agora, os Ken reinam absolutos como
‘machos dominantes’ enquanto as demais Barbies sofreram uma espécie de lavagem
cerebral assumindo o papel de namoradinhas ostensivas.
É ironicamente o conhecimento do papel
desafiador da mulher no Mundo Real trazido por Gloria que irá devolver as
coisas aos seus devidos lugares. Ou ao menos, tentar.
Crianças pequenas, seduzidas pelo visual
pueril, exuberante e predominantemente rosa, do filme de Greta Gerwig haverão
de se surpreender e até se ressentir da gradual concepção adulta que o filme
vai adquirindo a medida que avança –sem jamais deixar de ser divertido e
apropriadamente caricatural (e de contar com diversas piadas de duplo sentido),
o roteiro de “Barbie” (escrito à quatro mãos por Greta e seu marido Noah Baumbach)
aborda temas como o empoderamento feminino, a emancipação da mulher, as
ramificações tóxicas do machismo e do feminismo e o difícil equilíbrio entre
valores morais e sentimentos arrebatadores para se revelar um filme profundo,
carregado de ideias inesperadas justapostas de forma clara, corajosa e
inteligente. No admirável arco narrativo que se constrói do início ao fim,
“Barbie” engata sucessivamente marchas imprevistas de tensão, revolução e
dramaticidade, nessa mesma ordem, que levam o público à novas impressões,
culminando numa cena poderosamente emocionante –quando Barbie, assolada por
todas as mudanças provocadas por e sobre ela –encontra o fantasma de Ruth
Handler (Rhea Perlman), sua criadora, e decide reconhecer e aceitar, por fim,
sua própria humanidade.
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