domingo, 24 de setembro de 2023

O Ladrão de Sonhos


 Antes do bem-sucedido “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, não havia tanto pendor comercial no estilo do diretor Jean-Pierre Jeunet; ele mais lembrava (ao lado de seu colaborador, Marc Caro) uma espécie de Terry Gillian francês: Um esteta ácido, de visual tremendamente rebuscado e arrojado, atento, na construção de seus personagens, às minúcias inesperadas do ser humano, interessado em tramas que não se encaixavam harmoniosamente em nenhum gênero específico (aqui, a fantasia suplanta até a ficção científica conferindo à tudo um clima de pesadelo) e não se destinava à nenhum público de faixa etária pré-determinada; em suma, um realizador de cult-movies. Dentre suas obras, o duoDelicatessen” e “O Ladrão de Sonhos” permeou toda a década de 1990 como uma realização desigual lendária, fruto de um autor original e singular. Hoje, sobretudo, “O Ladrão de Sonhos” é uma produção rara: Não se acha com facilidade em streaming nenhum, não passa com frequência em absolutamente nenhum canal aberto ou fechado, e já houve quem murmurasse, na internet, que ele sequer existiu.

Na trama inusitadamente intrincada que as imagens acachapantes vão nos descortinando, conhecemos Krank (o exótico ator Daniel Emilfork), o ‘ladrão de sonhos’ do título, e sua bizarra família: O irmão Irvin (voz do grande Jean-Louis Trintignant) reduzido apenas ao cérebro (!?) e às crises homéricas de enxaqueca (!!), a irmã anã e manipuladora Martha (Mireille Mossé, de “Swimming Pool-À Beira da Piscina”) e o ‘sobrinho’, multiplicado em uma dúzia de clones (todos eles vividos pelo ator Dominique Pinon, presente em todas as obras de Jeunet) que servem a todos como empregados. Toda essa trupe estranha e disfuncional habitada um reduto, a lembrar uma plataforma, em pleno mar. De lá, Krank envia outros asseclas, integrantes de uma sociedade secreta de ciclopes (e personagens tão intrigantes quanto todos os outros), que sequestram na calada da noite crianças, levando-as aos punhados para o esconderijo de Krank.

Acontece que Krank é incapaz de sonhar, e essa deficiência o faz envelhecer precocemente –essa velhice prematura é enfatizada pelo rosto do ator Emilfork, um dos mais esquisitos já mostrados nas telas de cinema dos anos 1990 –a fim de deter essa mal-fadada sina, ele vale-se da parafernália tecnológica e steampunk que inventa em sua fortaleza e, por meio de uma máquina, extrai o sonho das crianças que vai mantendo como prisioneiros. O sonho, ou melhor, a capacidade de sonhar, mesmo que pesadelos soturnos (como atesta a primeira cena, um pavoroso vislumbre do lado assustador do Natal), é o que permite se manter jovem, reza a cartilha deste conto perverso e lúgubre perpetrado por Jean-Pierre Jeunet.

Entretanto, não é apenas isso: Há toda uma mecânica em torno desse acordo feito pelo recluso Krank e seus sinistros familiares. As crianças de rua que sistematicamente desaparecem em Paris (um ambiente, ele próprio, de sonho, retratado como se não houvessem maiores distinções entre o dia e a noite), são levadas pelos ciclopes, mas arregimentadas e, depois, negociadas, por duas maquiavélicas irmãs siamesas (Geneviéve Brunet e Odile Mallet), controladoras de um orfanato, que usam as crianças como mercadoria e ocasionalmente valem-se dos serviços de Marcello (Jean-Claude Dreyfus, de “Todas As Manhãs do Mundo”), um ex-adestrador de pulgas (!), cujas criaturas ainda lhe servem.

Quando o garotinho Denree (o pequeno Joseph Lucien) é levado pelos ciclopes, seu único amigo, o grandalhão ex-homem forte do circo e ex-caçador de baleias One (Ron Perlman) resolve seguir seu encalço ou morrer tentando. Ele encontra um grupo de crianças de rua e conquista a ajuda e, digamos, a afetividade da menina Miette (a fascinante Judith Vittet) para tentar descobrir, à duras penas, o destino estranho e ingrato dado à Denree e tantas outras crianças.

Um assombro visual que, por sua pouca predisposição comercial, passou injustamente batido por público e crítica naqueles anos 1990 de então, “O Ladrão de Sonhos” guarda em si um desigual anacronismo: É vanguardista e até hoje arrojado em suas poderosas imagens (a fotografia é de Darius Khondji, que depois moldou as sequências de “Seven-Os Sete Crimes Capitais”; os efeitos visuais, impecáveis, são à cargo de Pitof, que anos depois dirigiu “Vidocq-O Mito”; e os magníficos figurinos são assinados pela lenda Jean Paul Gaultier), e curiosamente, traz elementos em sua trama e em seus desdobramentos que o fazem inadequado até mesmo ao seu próprio período –afirmar que sua ambientação surreal é demasiada sombria para crianças seria redundância; “O Ladrão de Sonhos” é pontuado de fatalismo, pessimismo e subversão em níveis que podem atingir até mesmo a sensibilidade de alguns expectadores adultos, sem falar na relação construída pelo roteiro entre One e Miette que nitidamente flerta com a pedofilia (!).

Dizer que essas são características inerentes à época a que esta obra pertenceu seria equivocado: “O Ladrão de Sonhos” é tão incrivelmente incomum, em todas essas facetas e circunstâncias, que ele poderia desconcertar em qualquer momento ou local que tivesse surgido. A despeito de seu encanto obscuro, de sua realização brilhantemente visual e do viés singular de sua narrativa, é uma grande ironia que, onde e quando isso ocorreu, a incompreensão sofrida por ele tenha sido tanta que hoje poucos o conheçam.

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